Ecoturismo, qualidade de vida e artesanato de renda
irlandesa em Sergipe.
Por Érika Santana Melo Martins e Maria Rosane Prado Almeida.
Labjor.
O município de Divina Pastora, no estado de Sergipe, é
marcado pela atividade do artesanato. Por tradição, várias artesãs bordam a
renda irlandesa. Originada na Idade Média, no continente europeu, ela foi
trazida para a localidade pelas missionárias irlandesas. Desse modo, se fez
necessário analisar a importância da atividade das rendeiras, o convívio e a
organização desse grupo, as tipologias das rendas, sua forma de produção e
confecção. Busca-se conhecer os ganhos provenientes dessa atividade e também a
importância e influência desse artesanato no modo de vida da comunidade, assim
como a produção desse artesanato como uma alternativa para o desenvolvimento do
ecoturismo no município.
O ecoturismo, é importante ressaltar, utiliza o patrimônio
natural e cultural de forma sustentável, incentivando sua conservação e
buscando a formação de uma consciência ambientalista. O turismo gera
movimentação de divisas e desperta a população para a busca de conhecimentos, a
valorização, a conservação, o beneficiamento e o crescimento da autoestima.
Sergipe é um estado com quase 22 mil km² de área e com 75
municípios divididos em 13 microrregiões econômicas. Dentre elas, encontra-se a
microrregião do Cotinguiba, composta por onze municípios, na qual está inserido
o município de Divina Pastora, que faz parte do polo turístico dos Tabuleiros
Costeiros, sendo a principal região da renda irlandesa. Esse é um dos cinco
polos turísticos criados pela Secretaria do Estado de Turismo para melhor
divisão dos recursos advindos do Programa de Desenvolvimento do Turismo do
Nordeste (Prodetur-NE). Divina Pastora está localizada a 39 km da capital
sergipana. As mulheres que habitam o município bordam variadas rendas,
principalmente a renda irlandesa.
Jogo Americano
As missionárias irlandesas que aportaram no estado de
Sergipe trouxeram a arte do saber fazer a renda e difundiram-na para três
mulheres e irmãs que se transformaram em matriarcas no ensinar a renda na
cidade. Dona Sinhá (Ercília), Marocas (Maria Engrácia) e Dina (Berenice)
aprenderam a técnica e transmitiram-na, segundo relatos das próprias rendeiras,
para as mulheres da cidade. Hoje essas mulheres oferecem um artesanato rico em
detalhes e tiram renda dessa renda, na busca de uma melhor qualidade de vida,
mas percebem que os gestores municipais e a maior parte da população pouco
conhecem tal riqueza cultural.
Contudo, o ecoturismo, na sua essência, desperta a
comunidade para o aprimoramento da suas competências e habilidades na arte,
valoriza, preserva, conserva, beneficia e faz crescer a autoestima no local.
Por isso, a pretensão deste artigo é ser mais um instrumento de estudos e de
promoção desse artesanato que tem beleza, é único e tem originalidade.
O artesanato é algo próprio do turismo cultural, pois está
presente em um grande acervo das culturas locais. Trata-se de trabalho manual,
da produção de objetos pertencentes à chamada cultura popular. Portanto,
fazendo uma ligação entre o ecoturismo e o artesanato, surge a questão da
qualidade de vida na comunidade proporcionada pela renda gerada pelo turismo e,
consequentemente, pelo artesanato. A qualidade de vida está relacionada ao
ambiente em que se vive, ou seja, uma infraestrutura social, principalmente
pública, capaz de atuar em benefício do bem comum.
O intuito de estudar sobre esse assunto é contribuir de
alguma forma para a diminuição da desvalorização e da falta de reconhecimento
desse artesanato e propor um espaço de continuidade para essa atividade,
garantindo às rendeiras ganhos mais condinzentes com a riqueza e a delicadeza
dos trabalhos que executam com maestria e perfeição, num mundo que se globaliza
mais a cada instante.
Costura pelo desenho
Esse trabalho artesanal é tão importante para a cidade e
para o país que no dia 27 de novembro de 2008 a renda irlandesa foi reconhecida
como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Conselho Consultivo do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O modo de fazer a renda
irlandesa produzida em Divina Pastora foi incluído no Livro de registro dos
saberes , e o município surge como principal território da renda irlandesa no
país. Nesse local se econtraram os elementos que culminaram com a adaptação do
ofício (vinculado, originalmente, à aristocracia) pelas rendeiras sergipanas,
que normalmente são mulheres humildes e que reinventaram a técnica, o uso e o
sentido desse saber fazer.
A história da renda irlandesa começa muitos antes do que
imaginam as rendeiras que difundiram essa técnica na cidade. Seus primeiros
registros datam do século XV. Quando o bordado estava se tornando repetitivo,
houve inovação por parte das artesãs medievais, que começaram a alterar a forma
de fazê-los, levando à descoberta da renda de agulha. Foi na Itália que surgiu,
além de outras rendas, a irlandesa, que apesar de ser assim chamada, foi
repassada pelas missionárias da Itália às missionárias da Irlanda, que
posteriormente chegaram ao Brasil e difundiram a técnica em Divina Pastora.
Segundo relatos das rendeiras, quem introduziu a renda
irlandesa em Sergipe foi Dona Ana Rolemberg, já falecida, que aprendeu com Dona
Violeta Sayão Dantas e a ensinou a Júlia Franco. Esta, por sua vez, a
transmitiu a Marocas, Ercília e Sinhá. Estas duas primeiras são tias de Dona Alzira,
que aprendeu a arte de rendar aos dez anos de idade, ao mesmo tempo que sua
prima, Dona Lourdes. As duas, Alzira e Lourdes, até hoje ensinam as mulheres
jovens da cidade.
A renda irlandesa é uma das modalidades da renda de agulha,
sendo o instrumento básico para transformação dos cordões de lacê e das linhas
mercerizadas em peças deslumbrantes, que mais parecem obras de arte. Além da
agulha, as rendeiras usam uma almofada ou qualquer objeto que dê suporte para o
feitio da peça, uma tesourinha para cortar os alinhavos, e um dedal – embora
este último artefato seja o menos utilizado, porque elas dizem que com ele, não
sentem a renda sendo feita por suas mãos.
Qual a importância de se trabalhar as dimensões do
artesanato, sua inserção na comunidade e seu papel na qualidade de vida dessas
pessoas? No Brasil, segundo o artista paraibano Raul Córdula, existem dois
tipos de política do desenvolvimento do artesanato: a da disseminação de
mercados turísticos de artesanato e a tentativa de inserir o artesão no mercado
formal de trabalho. Córdula acredita que ambas são devastadoras, pois tirariam
do artesão a autonomia e a força de sua atividade, drenariam a economia e
fariam o artesão desacreditar de seu futuro.
Proteção para bandeja
Os defensores do ecoturismo , por outro lado, o veem como
uma iniciativa que visa o desenvolvimento das comunidades locais, e estas, por
sua vez, o percebem como um meio para melhorar sua qualidade de vida . O
ecoturismo é mais uma alternativa de renda para essas rendeiras que, ao longo
da história, já substituiram o trabalho na roça e nos canaviais pela agulha e o
lacê. Substituir o trabalho pesado por um trabalho delicado como o fazer renda
irlandesa se tornou algo prazeroso para elas.
Na cidade, não há alternativas de divertimento ou atrativos
naturais. Então, a confecção de renda irlandesa veio pra ocupar esse espaço
ocioso e, por isso, é comum ver as mulheres produzindo suas peças em plena
calçada das casas ou na praça principal da cidade debaixo da árvore,
conversando com as colegas que também rendam, ou até mesmo na associação onde
se encontram para conversar, enquanto outras, do lado de fora, observam as idas
e vindas das pessoas que transitam pela cidade.
Por causa da globalização e da necessidade de se adequar às
modernidades impostas pelo capitalismo, as rendeiras tiveram que recriar seu
trabalho e criar algumas peças para auferir ganhos um pouco maiores.
Antigamente, as peças eram feitas apenas com duas cores de cordão de lacê: o
branco e o dourado. Hoje, elas aproveitam outras cores para fazer artigos que
impressionam todos os tipos de públicos, como o vermelho, variadas tonalidades
do rosa e amarelo, o verde escuro, entre outras. Com elas, produzem peças que
estão em evidência, como capinha de celular, colares, broches, brincos,
vestidos, pulseiras, apliques de roupa, golas de blusa, arranjos de cabeça,
bolsa-carteira, entre outras peças que estão agradando muito variados públicos,
principalmente estilistas da região Sudeste.
Um levantamento realizado nos locais onde são comercializadas
as peças de renda de Divina Pastora mostrou que o turista, na maioria das
vezes, desconhece a origem da renda e como ela é confeccionada. Muitos
comerciantes atuam como atravessadores, que compram as peças diretamente das
rendeiras a preços baixos e as revendem em seus espaços com grandes lucros.
Poucos são os turistas que têm a oportunidade de presenciar
uma rendeira trabalhando em sua renda. Não há um roteiro oficial que englobe a
cidade de Divina Pastora e que inclue visitas às suas rendeiras. Os roteiros
oficiais de turismo cultural existentes no estado são apenas o de Laranjeiras,
o de São Cristóvão e o dos cânions de Xingó – que abrange a visitação ao Museu
Arqueológico de Xingó –, os quais recebem toda a atenção e recursos advindos das
esferas estaduais e federais. Porém, mesmo sem essa atenção oficial, a renda
irlandesa pôde ser vista por milhares de brasileiros, quando a atriz Ana Paula
Arósio apareceu no primeiro capítulo da minissérie Mad Maria , transmitida pela
Rede Globo: seu vestido era todo em renda irlandesa e foi confeccionado pelas
rendeiras de Divina Pastora.
O ecoturismo poderia vir como uma nova alternativa de
preservação e promoção desse patrimônio cultural do Brasil. Através de
sugestões e medidas sustentáveis, como a criação de um roteiro cultural ou de
um roteiro integrado com Laranjeiras e/ou São Cristóvão, o poder público
poderia contribuir para uma maior divulgação da arte da rendeira de Divina
Pastora. Outro ponto seria o fortalecimento do associativismo entre as
rendeiras. Estratégias para tornar mais eficazes as vendas das peças e a compra
de matéria-prima, e para consolidar as bases contábeis e administrativas de
suas atividades, o que poderia proporcionar um aumento da clientela,
auxiliariam também no desenvolvimento sustentável desse patrimônio.
É preciso que, agora, com o reconhecimento como patrimônio
cultural do Brasil pelo Iphan, os gestores públicos e a população sergipana
valorizem mais esse artesanato e deem condições melhores para as rendeiras
trabalharem. Elas precisam ser respeitadas. A comercialização desses produtos
deve ser intesificada através de um projeto em que elas não precisem vender as
rendas através de atravessadores e que haja venda não só por encomendas, mas
sim diretamente para turistas e por outros mecanismos que fortaleçam a economia
das rendeiras. É preciso também visar a busca de estratégias de divulgação da
renda e da associação das rendeiras, de melhorias das condições de trabalho e
de ampliação da geração de renda, para que, assim, a renda irlandesa realmente
gere renda para essas rendeiras.
Érika Santana Melo Martins e Maria Rosane Prado Almeida são
formadas no Curso Superior de Tecnologia em Ecoturismo do Centro Federal de
Educação Tecnológica de Sergipe e foram orientadas, na pesquisa com as
rendeiras, por Amâncio Cardoso Santos Neto.
Fotos e texto reproduzidos do site:
oei.es/divulgacioncientifica/noticias_365.htm