Foto: Maurício Pisani
Publicado originalmente no site do El País/Brasil/Cultura,
24/10/2015.
Todo mundo aqui é negro.
Festa dos Lambe Sujos X Caboclinhos reconta a luta pela
liberdade de escravos de Sergipe
Por Carla Juménez (Laranjeiras, SE.
É manhã do domingo, dia 11, em Laranjeiras, município de
Sergipe, onde cerca de 70 rapazes com a pele pintada de preto, vestindo gorros
e shorts vermelhos, dançam ao ritmo das batidas de percussão dos companheiros
que batucam seus instrumentos. Percorrem as ruas desde a madrugada e só vão
parar no final do dia, quando termina a festa dos Lambe Sujos X Caboclinhos,
desconhecida para a maioria dos brasileiros, embora íntima de antropólogos e
historiadores, que abarcam ali para estudar um pedaço escondido da alma
brasileira.
O encontro dos moradores de Laranjeiras paramentados como
negros e índios acontece uma vez por ano, num cortejo teatralizado em homenagem
à história dos escravos da região, que lutavam por sua liberdade. Os Lambe
Sujos, pintados com uma tinta negra escura, são guiados por um príncipe, e pelo
rei do quilombo. Atrás deles vão os Caboclinhos, de cocares na cabeça, e a pele
pintada de vermelho. Representam os índios contratados pelos donos dos engenhos
de açúcar para recapturar seus escravos, prática comum naquele Brasil até 1888,
quando a escravidão foi finalmente abolida.
O grupo é seguido por um público fascinado pela estética, o
som e o entusiasmo desses atores por um dia, que encenam a festa inventada por
negros alforriados por volta de 1860. Desde então, o festejo se repete no
município de 27.000 habitantes, no segundo semestre do ano. De uns anos para
cá, todo segundo domingo de outubro, sempre perto do aniversário da
independência de Sergipe, que até 1820 vivia sob a tutela do Estado da Bahia.
Dom Pedro II na Atenas sergipana: ecos da cidade rica, culta
e negra
O Lambe Sujos X Caboclinhos, ou apenas Lambe Sujos, como é
mais conhecida, poderia ser mais uma festa regional de uma pequena cidade em
qualquer lugar do Brasil. Mas a quantidade de informações e sutilezas
concentradas nessa narrativa folclórica é tão rica que já inspirou dezenas de
textos e livros acadêmicos. “Estamos retratando a história da cultura
brasileira, de um povo humilde do Brasil. A senhora não encontra isto nas
universidades. As universidades é que vem aqui beber da fonte do mestre”, diz a
esta repórter o Mestre Zé Rolinha, o rei dos Lambe Sujos há 30 anos, e
considerado o dono da festa.
Quando criança, ele também brincava, levado pelo pai e pelo
tio que integravam o grupo. O ouvido fácil para aprender a tocar instrumentos,
além de todas as histórias e lendas que cercam o folguedo, foram enredando Zé
Rolinha. Os mais velhos viram nele o candidato natural para assumir o posto de
monarca, papel que exerce até hoje com galhardia. Em uma casa modesta, mas de
coração gigante, Zé Rolinha vive um entra e sai de pessoas na véspera do
cortejo. É ele quem cuida da organização, pede apoio ao poder público, e se
articula com seus pares para manter a tradição cultural e a história “do meu
município, do meu Sergipe e do meu Nordeste brasileiro”.
Laranjeiras, a 20 minutos da capital, Aracaju, foi uma das
mais prósperas cidades do país nos tempos da escravidão, graças à riqueza
proporcionada pela cana de açúcar plantada ali. Chegou a ser candidata a
capital da então província de Sergipe, numa época em que as famílias brancas
endinheiradas tinham acesso ao que havia de melhor do exterior, vindo de navio
pelo rio Cotinguiba. Mas era o trabalho braçal de milhares de escravos que
sustentava os engenhos. A ânsia pela liberdade criou movimentos de quilombos,
negros fugitivos que formaram povoados ali, vivos até hoje através de seus
descendentes. “A festa encena o que Laranjeiras vivenciou historicamente”,
afirma Evandro Bispo, um dos organizadores do folguedo, que teria sido criado
antes da abolição, embora só existam registros oficiais da festa a partir de
1930. Bispo é Lambe Sujo numa parte do dia, e pai Juá na outra, quando sai
fantasiado como tal de um terreiro de candomblé para ser o guia espiritual dos
negros diante da batalha que vão encenar ao final da tarde contra os Caboclos.
É o ponto alto do folguedo.
Todos querem ser pretos no dia da festa, começando na
madrugada de domingo para a alvorada festiva. O bloco de negros e índios vai
crescendo com o avanço das horas, seguidos por moradores e turistas, que
improvisam vestes vermelhas para se parecer aos Lambe Sujos, ainda que eles
sejam vencidos no final da festa pelos Caboclinhos. Uma derrota vitoriosa,
diga-se de passagem. “Nunca vi um rei ser vencido tão altaneiro como o Rei dos
Lambe Sujos que sai de cabeça erguida, como se não houvesse perdido a batalha”,
brinca a antropóloga Beatriz Góis Dantas, doutora pela Universidade Federal de
Sergipe, que se aprofundou nos estudos dessa festa entre 1969 e 1990.
A derrota faz parte da narrativa, segundo os guardiões da
tradição, porque quando a festa foi criada pelos negros alforriados as
autoridades de então teriam combinado assim. Se por ventura os Lambe Sujos
fossem vitoriosos poderiam estimular os negros que ainda viviam sob o manto da
escravidão a se revoltarem.
Mas a resistência e a coragem por lutar pela liberdade é dos
negros, e não dos caboclos, que estão a mando dos brancos, estes quase
anti-heróis nessa festa. Samba, nego, branco não vem cá. Se vier pau há de
levar, diz um dos cânticos entoados pelos protagonistas do folguedo. “Todo
mundo é negro aqui”, dizia José Luiz, na festa deste ano, com o rosto pintado
de preto muito preto, que destacava seus olhos azuis. Os braços continuavam
brancos. “A festa é para lembrar a escravidão, a força do negro, tudo é em
homenagem a eles”, explica. Luiz, que contemplava de longe o cortejo, ao lado
de uma caixa de isopor, com água e cerveja para refrescar os visitantes que
estavam sob o sol do meio dia nordestino.
Os Lambe Sujos lembram, de cara, o saci-pererê, personagem
imortalizado por Monteiro Lobato no século XX. Alguns fumam cachimbo e outros
chupam chupeta. Cativam de imediato com seus pandeiros, ganzás e tambores, que
se combinam num ritmo afro contagiante, música “guerreira e agressiva”, como
define Bispo, que toca cuíca.
Várias histórias alimentam, ainda, a carapuça vermelha da
cabeça. Uma delas é que alguns escravos fugitivos, no passado, se fingiam mesmo
de saci e pulavam num pé só para assustar os que os avistassem na calada da
noite. Mestre Zé Rolinha diz que não tem nada disso. “Os mais antigos eu não
sei. E se soubesse, também não diria. As coisas internas do grupo não
contamos”, diz ele, fazendo mistério.
Há quem veja no gorro uma alusão a outros elementos
subjetivos. “Me pergunto se o formato de toca não tem a ver com a Revolução
Francesa, que tinha como símbolo o barrete frígio. Como a festa de Laranjeiras
é um canto de liberdade, não seria impossível...”, diz a professora Beatriz. A
cultura europeia tinha forte influência em Laranjeiras em seus tempos
áureos.“Havia senhores de engenho que pagavam aulas aos escravos para que eles
servissem as visitas falando em francês”, conta Evandro Bispo.
Um personagem controverso se destaca neste teatro a céu
aberto: o feitor que carrega um chicote de verdade, e distribui chibatadas
reais a quem se descuida e desobedece as ordens dos mestres do grupo para o
cortejo. Ele leva um clima de tensão permanente para o evento. Quem não toma
cuidado sai com uma marca vermelha no corpo. Muitos rapazes, embalados pela
bebida e a disposição de testar seus limites, provocam o feitor com o único
intuito de serem chicoteados, numa aparente competição masculina de resistência
à dor. O efeito dessa cena é chocante. Mas compõe um certo caos que, de alguma
maneira, faz sentido nessa festa. O som do chicote transporta os visitantes
para os castigos corporais sofridos pelos principais homenageados da festa: os
ancestrais negros que sentiram na pele a escravidão.
Tinta preta e mel de cabaú na pele.
A cor dos Lambe Sujos é uma atração a parte. Um preto
escuro, e com um brilho que realça ainda mais o tom de pele. Para chegar a ele,
a pele é revestida primeiro com tinta em pó. Em seguida, o corpo é coberto com
mel de cabaú, derivado da cana de açúcar, que fornece o brilho. Fernando, de 21
anos, cego desde os três, conta que acompanha a festa desde criança. Uma das
sensações que o conectam a ela é o gosto do mel.
Mais do que um item para valorizar o tom da pele, o mel de
cabaú reproduz um costume real dos tempos imperiais. “O mel deixa o corpo
grudento e era utilizado pelos escravos fugitivos para colar folhas ao corpo e
servir de camuflagem contra seus perseguidores, segundo os relatos orais dos
moradores mais antigos da cidade”, diz Evandro Bispo.
Por três reais, interessados em imitar os ancestrais de
Laranjeiras faziam fila, no último dia 11, na calçada da casa de um dos
moradores que se outorgou a função de lambuzar quem estava disposto a brincar
fantasiado. Quem não se atrevia a ficar pintado da cabeça aos pés, era marcado
do mesmo jeito na hora da melação. Uma mão no rosto, um abraço repentino. E
todos na cidade de repente estão manchados de preto.
Até os anos 90 a festa era mantida quase marginalmente,
celebrada na periferia da cidade. Em 1969, quando Beatriz começou a estudá-la,
não mais que duas dezenas de brincantes participavam do folguedo, com um
público mais modesto. “Ela parece ganhar um novo significado diante da
valorização da cultura negra das últimas décadas”, diz ela, que escreveu
diversos livros sobre o evento.
De fato, a festa cresceu, ganhou a cidade toda, o apoio da
Igreja católica local e dos terreiros de candomblé, incluídos no seu enredo,
abençoando os personagens em alguns atos desta ópera popular. Há quem reclame
que o poder público apoia pouco, e só aparece quando tudo está pronto para
tirar uma casquinha. Os organizadores se preocupam, ainda, com o aumento do
público nos últimos tempos, que por vezes confunde a tradição com uma festa de
carnaval. Não importa. A festa fica maior a cada dia porque o enredo é
cativante, a música é alegria e os elementos tão brasileiros despertam empatia
imediata. Laranjeiras é um pedaço da alma do Brasil. No ano que vem tem mais.
Texto e imagem reproduzidos do site:
brasil.elpais.com/brasil
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