Publicado originalmente no site DESTAQUE NOTÍCIAS, em 14 de
setembro de 2021
Por Clóvis Barbosa *
Sem medo de cometer quaisquer deslizes de ordem histórica, entre os anos de 1976 e 2015 ninguém poderá falar da política sergipana sem citar o nome de Rosalvo Alexandre de Lima Filho. Foi justamente na semana que antecedia o carnaval de 1976 que desencadeou em Sergipe a famigerada “Operação Cajueiro”. Vivíamos sob a égide de uma ditadura militar, então presidida pelo general Ernesto Beckmann Geisel. Eram dias de chumbo a que estavam submetidos os militantes políticos, estudantes, trabalhadores, homens, mulheres e crianças. Em todo Brasil, nesse período, foi iniciado um processo de desarticulação do Partido Comunista Brasileiro, então na clandestinidade. No Estado, em várias prisões houve a predominância da perversidade e brutalidade praticada por agentes do regime autoritário contra essas pessoas. Dentre inúmeros presos políticos ali estava Rosalvo Alexandre, cuja detenção ocorreu no interior de Minas Gerais, onde ele se encontrava fazendo um curso de mestrado na área de agronomia. Depois da prisão e julgamento, Rosalvo se integrou completamente à política sergipana, alinhando sua participação nos chamados partidos de esquerda. Foi vereador na capital e se ligou umbilicalmente ao líder político Jackson Barreto. Conhecido como grande formulador político, Rosalvo desenvolveu, também, uma enorme capacidade na arte de mobilizar pessoas para os grandes acontecimentos da política. Era brilhante em descobrir e estimular lideranças de bairros, trazendo muito deles, claro, para o seu agrupamento. Numa nova roupagem, pode-se dizer que ele foi o criador dos chamados “Ratos de Rádio”, por quem nutria uma especial atenção.
Esses profissionais eram treinados para emitirem opiniões nos diversos programas jornalísticos da cidade. Era evidente que essas manifestações tinham o objetivo de defender o governo – municipal ou estadual – e políticos variados. Os Ratos de Rádio sem-pre estavam a postos para se posicionar contra determinada crítica ou ação investida contra o seu patrono, para quem, também, veiculava propaganda política e difundia opinião favorável, mas contrária aos seus adversários. Em alguns programas de rádio havia a conivência de radialistas ou de seus produtores. Os erros e acertos dessas participações eram diariamente avaliadas e, nesse mercado, surgiram excelentes radialistas e homens da imprensa. Mas Rosalvo Alexandre era um agitador das massas? Para o jornalista Carlos Cauê, competente marqueteiro político e intelectual de Sergipe, em artigo publicado na revista Cumbuca, de março/2015 – Ele é mais do que isso. (…) é um agitador de mentes, as mais diversas. Sejam as de jovens conflagrados com dúvidas e ansiedades adolescentes, que encontram nele a agitação dos mares modernos, capaz de abrigar toda subversão comportamental, e redimi-las; sejam as de mulheres que se deixaram arrastar pela sedução de um homem que conjuga com tamanha equidade os eixos de uma vida libertina e sóbria, mas completamente apaixonante às suas existências; sejam as de políticos sequiosos por entender as leis que regem a trama do tecido político e sonham apoderarem-se desse tecido para vestirem a si ou aos outros; ou mesmo a de amigos que empreenderam parte de suas vidas na companhia desse passageiro e aprenderam com ele a serem humanos. Mais humanos, talvez.
Cauê, acima, consegue sintetizar, poeticamente, o perfil dessa figura que fascinava a todos que dele se aproximavam. Era um homem que gostava de aglutinar em torno de si os reprimidos da sociedade hipócrita e os oprimidos pela política que exclui. Não cultivava ódio por quem quer que seja. Nos anos 1980, o seu jeito irrequieto o fez criar em sua casa o famoso jabá com abóbora, uma espécie de jantar oferecido aos jornalistas e políticos da terra. De início, era chamado de o “jabá dos jornalistas”, uma alusão aos profissionais que recebiam dinheiro para veicular notícia positiva ou negativa a favor ou contra alguém. Depois, com a popularidade do encontro, políticos das várias matizes ideológicas passaram a participar, transformando-se, o evento, num dos grandes acontecimentos da política de Aracaju. O “jabá com abóbora” acabou em razão de um incidente ocorrido entre dois jornalistas, que culminou em lesões corporais graves para um deles. Era a prova inconteste do trânsito livre que Rosalvo tinha com os setores da imprensa e da política sergipana. Ele gostava de afirmar com sua voz estrepitante que o seu “jabá” era uma típica “bagunça organizada” e que “é no jabá onde se decide tudo e define candidatos”. Outra iguaria apreciada por Rosalvo, tida por ele como um poderoso afrodisíaco, era o popular “sururu com capote”, servido em tijelinhas individuais com caldo. Certa vez, numa reunião de políticos numa casa de praia no Mosqueiro, o sururu foi servido e muita gente – no dia seguinte – reclamou de caganeira, levando o então presidente da Petrobrás, José Eduardo Dutra, a afirmar: – Parece que o poder afrodisíaco do sururu mudou de lado. Ao invés do apetite sexual, trouxe uma violenta brochura, através de cólica, suor frio e vômitos.
Eu, particularmente, me divertia com o seu senso de humor e sua gulodice. Em Salvador, fomos uma vez acompanhados de nossas mulheres e ficamos hospedados numa casa de um parente de Leila – sua mulher à época – no Bairro de Itapuã. Como tinha passado a infância em Salvador, contei a ele das minhas peripécias como apreciador de pimenta. Fomos a uma baiana que vendia no seu tabuleiro uma série de iguarias, como acarajé, abará, vatapá, caruru, efó, acaçá, lelê e bolinho de estudante. Cheguei para a vendedora e disse na presença de nossas mulheres: – Baiana, quero uma punheta pra mim e pra meu amigo Rosalvo! E ela, dirigindo-se à nossas mu-heres: – Oxente, e as meninas não querem não? Um silêncio pairou no ar, todos perplexos olhando para mim. Tive que explicar que o bolinho de estudante, um doce feito de massa de tapioca frito, coco, açúcar e canela era conhecido popularmente como punheta. Ele riu muito durante a nossa permanência na capital baiana com o episódio. A partir de 2009, já doente, Rosalvo começou a viajar para fora do pa-ís, sempre acompanhado ora da sua filha Benária, ora com uma de suas mulheres à época – Vania ou Aline – , da família de Luiz Carlos Santana, o Lula, professor e procurador do município de Aracaju e de João Mendonça, engenheiro aposentado que laborava para terceirizadas da Petrobrás. Foram ao Chile, Argentina e à Europa. Em 2010 viajaram para Madrid e Roma, onde assistiram a Hora do Angelus, – o Toque das Ave-Marias – na Praça de São Pedro. Quando o Papa abençoou a todos e disse: – Vão em paz, que o Senhor vos acompanhe! Rosalvo respondeu estridentemente: – Muito obrigado!!! O seu grito chamou atenção de todos ao redor. Ele tinha que falar era Amém!
Já com dificuldades para andar, dizia ele que se estivesse atrapalhando os passeios, que o deixasse no hotel. Nem pen-ar, Rosalvo era uma companhia agradável nessas viagens. Em Paris, começou a comer escargot com cerveja. Enquanto seus amigos comiam um, ele comia três. Disseram-lhe que a conta seria dividida equitativamente. Ele deu bronca e chamou a todos de mãos de figa e miseráveis. Em todos os lugares – Paris, Amsterdã, Madrid, Roma, Buenos Aires, Santiago do Chile – sempre fazia os pedidos nos restaurantes em português. Ninguém entendia nada e ele insistia. A cena era pitoresca e sempre encerrada com muito riso. Em Amsterdã, ele se encontrou com um amigo gay de Aracaju, que ficou bastante solícito em encontrar seus conterrâneos. E passou a ser um guia naquela cidade holandesa. Ninguém aguentava mais as perguntas insistentes de Rosalvo ao amigo sergipano: – Você continua gay? E ele sempre respondia “sim”, sem qualquer constrangimento. Foi chamada sua atenção para o seu comportamento. Não adiantava, até que ele inquiriu: – Quando você faz amor, beija na boca? Todos ficaram avermelhados e a resposta veio de inopino: – E eu sou mulher de fazer amor sem beijo na boca?! Rosalvo ria e todos adoravam aquela alegria de viver estampada em seu rosto. A última vez que estive com ele foi no início de 2015. Fomos almoçar na Cantina d’Itália, na Orla da Atalaia. Ele estava de cadeira de rodas. Era servido por Aline, tanto o copo de cerveja levado à sua boca como a refeição. Não aguentei e chorei ao vê-lo naquela situação. Um filme passava pela minha cabeça e, em flashes, relembrava tantos e tantos acontecimentos políticos e passagens pela vida que vivenciamos.
Ele disse, carinhosamente, ao me vê-lo naquela situação – Fiz na vida o que deveria ser feito. Sou um homem feliz! Lembrei-me de uma frase cujo autor ignoro: A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos. Ele morreu em julho de 2015, aos 69 anos.
* É advogado, ex-presidente da seccional da OAB e conselheiro do Tribunal de Contas de Sergipe.
Texto e imagem reproduzidos do site: destaquenoticias.com.br
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