Publicado originalmente na Revista Rever, em 23 de abril de
2014.
Um Bispo a serviço dos pobres no norteste do Brasil.
O bispo dos operários e da educação de base entrava para a
história do Brasil, escrevendo um capitulo fundamental no Nordeste pobre e
resistente; crente e inquieto
Por Romero Venâncio*
Sai em muito boa hora o trabalho de pesquisa que consumiu
alguns bons anos da vida do Padre Isaias Nascimento. Entre a labuta de pastor
numa região pobre de Sergipe e o tempo de pesquisa, veio a lume um trabalho
precioso: Dom Távora: o bispo dos operários, publicado pela Editora Paulinas. O
livro escrito não apenas para reanimar a memória sobre o episcopado de Dom
Távora a frente da arquidiocese de Aracaju (1958-1970), mas defender a tese de
que ele foi na sua experiência episcopal “um homem além do seu tempo”, um
exemplo para os dias atuais. Alentadora a esperança do Pe. Isaias. Os tempos da
igreja católica atual são outros, sabemos todos.
O livro trabalha com um rico material de fonte, tais como:
entrevistas; matéria de jornal; depoimentos de pessoas que conviveram com o
“bispo dos operários”; trabalhos de pesquisa acadêmica sobre a igreja católica
da época e a ditadura militar. Isto por si só, já justifica a leitura do livro.
Informa-nos, sem apologia barata, a vida de um prelado e de sua atividade
pastoral/política decisiva para um momento da igreja católica no Brasil e em
Sergipe.
Uma afirmação presente no livro nos chama de imediato à atenção:
Dom Távora, bispo da JOC e bispo do MEB. Duas organizações ligadas a igreja
católica no Brasil de grande importância na visibilidade social da igreja no
mundo moderno (tempos saudosos!). A juventude operária católica (JOC) foi parte
integrante da Ação Católica brasileira, era uma espécie de movimento da classe
operária urbana. Desde 1947 (quando chega ao Brasil) até o final dos anos 60,
foi um dos movimentos mais importantes da igreja atuando no mundo do trabalho,
junto a juventude operária pobre.
Numa época em que a maior parte da Igreja católica ainda se
encontrava intimamente ligada ao Estado e as classes dominantes, a JOC ajudou a
instituição a compreender e engajar-se nas necessidades e valores da classe
operária e a importância de desenvolver práticas pastorais mais adequadas aos
trabalhadores. Sob este aspecto, a JOC ajudou a transformar uma instituição
sabidamente hierárquica, autoritária e indiferente aos movimentos de base ou de
leigos. Nesse ponto o livro de pe. Isaias é exemplar: Dom Távora, antes o padre
Távora esteve no inicio desse processo de criação da JOC brasileira e teve uma
formação que lhe marcaria até o fim de seu episcopado em Sergipe.
Para nós fica aquela saudade de uma igreja que foi engajada
numa prática pastoral que lhe mudou a fisionomia e a sua maneira de ser no
mundo moderno. A JOC no final dos anos 50 passou a se envolver em questões
políticas, iniciando-se uma rápida e profunda transformação de um dos mais
importantes grupos leigos na igreja católica brasileira. Devido à crença da
JOC, de que sua missão religiosa exigia uma atenção às questões políticas e
sociais, ela estava aberta à influencia dos conflitos da sociedade como um
todo. A politização da sociedade durante o final do período populista de Vargas
levou a JOC a se identificar cada vez mais com a luta da classe operária e a
ter uma participação mais ativa na política. Essa tendência foi reforçada pelas
mudanças na igreja católica.
Durante o final da década de 50, embora a instituição ainda
fosse conservadora, surgiram novos impulsos inovadores, apoiados pela CNBB e
pelo saudoso Papa João XXIII. Essa situação ajudou a estimular as inovações
pastorais entre as classes populares, incentivando assim as atividades
progressistas. Um elemento desenvolvido pela JOC nos parece de importância
fundamental para entender um rumo que a igreja tomava ao trabalhar com jovens
operários: a preocupação com os problemas materiais da vida da classe
trabalhadora substituiu a preocupação inicial com as tradicionais questões
morais.
A JOC não mais via os problemas principais dos jovens
trabalhadores como questão moral no sentido estrito, mas, sim, como questões
políticas e econômicas. Ela se abriu a classe trabalhadora como um todo em vez
de focalizar os jovens trabalhadores católicos. Numa só mudança de direção, a
JOC relativiza o moralismo religioso e assume uma posição ecumênica no trabalho
com jovens pobres. Tudo isso sem fazer com que a JOC continuasse profundamente
religiosa. Talvez porque quanto mais a igreja católica entra na vida concreta
dos pobres mais religiosa ele continua e o inverso também é verdadeiro: quanto
mais espiritualista se torna a igreja, menos profética e mística torna-se essa
mesma igreja. Fenômeno que assistimos hoje na igreja católica brasileira. Não
são mais homens como Dom Távora ou Dom Helder ou Dom Pedro Casáldaliga que são
modelos de profetismo e esperança, mas padres “cantores” e delirantes que
adoram se banquetear com estrelas televisivas e ricos e ainda se colocam como
esperança para um povo ainda pobre e espoliado pelo capitalismo.
Triste momento na rica religiosidade brasileira. Ganhamos em
fanatismo e perdemos em profetismo. É por isso que o livro do Pe. Isaias, ao
recuperar e atualizar a memória de Dom Távora, nos faz refletir sobre os rumos
da igreja atual e se torna sinal para as ainda comunidades proféticas
espalhadas por esse Brasil periférico a fora.
Um outro movimento importante na formação do Dom Távora foi
o MEB, de saudosa memória nos anos 60. Em 1961, a CNBB decidiu assumir a
experiência das escolas radiofônicas de Natal e estendê-las às regiões Norte,
Nordeste Centro-Oeste. Surgia assim o Movimento de Educação de Base (MEB). Uma
iniciativa fundamental naquele momento junto às classes populares do interior
esquecido do Brasil, tendo em vista a promoção social em sentido pleno dos mais
pobres. O grande pedagogo Paulo Freire ofereceu ao movimento o seu “método de
alfabetização-conscientização”, fruto de uma iniciativa paralela na
universidade de Pernambuco. Sua pedagogia do oprimido salientava o respeito
pelas classes populares e por suas capacidades, iniciativa singular na
pedagogia brasileira acadêmica, onde tínhamos uma escola ainda muito elitista e
preconceituosa em relação a instrução dos pobres.
A educação de base pretendia ser integral. Não podia
limitar-se às primeiras letras ou a noções de matemática. Sua meta era o
desenvolvimento pessoal e comunitário, com instruções práticas no campo da
saúde e da agricultura, incluindo princípios de democracia política e direito
sindical. Devia, sobretudo, despertar e apoiar iniciativas locais capazes de
preparar o caminho para a indispensável transformação social. Momento precioso
da igreja católica no Brasil que é apaixonadamente recuperado pelo livro Dom
Távora: o bispo dos operários. Era um momento em que a igreja católica na
pessoa dos monitores do MEB deixavam de divulgar um anticomunismo maniqueísta e
passavam a se dedicar ao processo de conscientização dos trabalhadores e
trabalhadoras rurais, quer dizer, à criação dos estimulantes intelectuais
necessários á descoberta, pelos oprimidos, da realidade da sua opressão, das
causas econômicas e políticas desta opressão e dos meios de combatê-la.
Rico momento de reflexão teológico-política de uma igreja
que cada vez mais descobria o sentido de ser cristão numa dimensão concreta da
vida dos pobres e ficamos informados pelo livro do Pe. Isaias que o generoso
bispo da arquidiocese de Aracaju participou ativamente desse processo de
mudança por que passava o Brasil e a sua igreja. O bispo dos operários e da
educação de base entrava para a história do Brasil, escrevendo um capitulo
fundamental no Nordeste pobre e resistente; crente e inquieto.
No final do livro, o Pe. Isaias descreve a noticia da morte
de Dom Távora em 3 de abril de 1970 de maneira poética e trágica. Estava
partido deste mundo o bispo dos operários e da educação de base e a
Arquidiocese se preparava sem se preparar para os primeiros passos de um
processo de volta a “velha disciplina”. Uma onda de neo-conservadorismo iria se
abater sobre a arquidiocese.
O sucessor de Dom Távora, de nome Luciano Duarte e aliado
fervoroso da ditadura de plantão, iria desmobilizar toda a pastoral do bispo
dos operários e da educação de base; iria isolar os amigos e colaboradores de
Dom Távora e antecipando assim, uma linha que seria na década de 80 uma tônica
da igreja católica no Brasil.
A geração de Dom Távora estava saindo do cenário da igreja
para dar lugar a uma regressão sem precedentes no catolicismo brasileiro… Mas
esse não é o tema da pesquisa do livro do Pe. Isaias. O pós-Dom Távora ainda
espera ter o seu balanço merecido em Sergipe. Terminamos nossa breve resenha do
marcante livro publicado pela editora Paulinas, citando uma nota no jornal
católico A Cruzada do dia 4 de abril de 1970 e que define o cristão e a
personalidade do bispo dos operários e da educação de base: “Se distinguia por
uma bondade infinita que o levava a tornar-se tudo para todos, que a caridade
como ele a entendia foi a tônica da sua vida”.
*Romero Venâncio é professor de Filosofia da Universidade
Federal de Sergipe e Colaborador da REVER.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistarever.com
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