Texto publicado originalmente no site do Portal INFONET, em
29 de março de 2020
A literatura sergipana está viva — e tem humor
Por Marcos Cardoso (Do Blog Infonet)
A literatura sergipana está viva, provocando sensações,
produzindo efeitos estéticos e nos permitindo compreender melhor as verdades da
condição humana. Nos últimos anos, novos e velhos autores venceram o medo da
exposição pública e tiveram coragem de lançar aos livros a originalidade de
suas criações literárias.
Originalidade, sim, aquilo que Arthur Schopenhauer
(1788-1860) definiu com lirismo: “Os eruditos são aqueles que leram coisas nos
livros, mas os pensadores, os gênios, os fachos de luz e promotores da espécie
humana são aqueles que as leram diretamente no livro do mundo”.
Depois que foi profetizada a morte do livro, parece que as
editoras proliferaram. Na grande Aracaju, existem hoje a Editora UFS, a Editora
Universitária Tiradentes, a Infographics, as gráficas que produzem livros e
outras. Mas duas editoras estão na vanguarda dessa onda que mantém o movimento
no mundo das letras e atiça o desejo de tornar conhecidos os que escrevem: a
Edise, editora oficial do Estado, presidida por Ricardo Roriz e dirigida por
Milton Alves, e a Criação Editora, da expedita programadora visual Adilma
Menezes.
A Edise publicou 24 livros em 2019, sendo que a maioria
dessas obras são textos de não-ficção, poucos de literatura. Ainda assim dois
títulos literários merecem referência: o muito aguardado “A vida me quer bem —
Crônicas da vida sergipana”, de Amaral Cavalcante, e “O tatu de Pirakê”, do
contista revelação Djenal Gonçalves Filho. Um ano antes, é imperativo
mencionar, a Edise lançou o segundo livro de contos de Zeza Vasconcelos, “Suíte
dos viventes”.
Já a Criação Editora publicou impressionantes mais de 60
livros no ano passado, mas igualmente pouca coisa no campo literário, como o
livro de crônicas “Ranhuras do tempo”, do também poeta Inácio Loiola. Mas
merece destaque um romance, “O caderno de Tântalo”, de Augusto de Melo, um
veterano escritor, inédito até então.
A vida me quer bem
Há uma marca em comum nessas obras, além da originalidade: o
humor. As crônicas de Amaral convidam à felicidade, o bom-humor respira dos
episódios mais comezinhos narrados sem pieguice e nos tipos caseiros descritos
sem piedade. Talvez não seja coincidência que Djenal bordeje seus contos com
pérolas de graça e pílulas de sorriso. Um é mestre e o outro é discípulo.
Tomo emprestado o prefácio de Jeová Santana para advertir
que os textos de Amaral Cavalcante vão muito além do humor: “À leveza e à
concisão, marcas proeminentes na crônica, Amaral ainda acrescenta o humor. Este
advém tanto dos episódios quanto dos muitos tipos que atravessaram sua vida,
quanto do próprio estilo, no qual incluem-se a valia do registro oral, a
adjetivação equilibrada entre a imponência e o escracho, as pinceladas de
poesia (‘Teimosa, só brota quando a chuva é festa na mata e, na aguada, o
sapinho de rabo anuncia — danado de contente — que lá vem fartura de Deus
molhando a plantação. Ploc, Ploc, o olho verde perruche espia’), o modo como
articula as frases, a predisposição de tirar o leitor de sua zona de conforto e
colocá-lo no redemoinho da cena — como se sabe, nesta última, foi useiro e
vezeiro certo Machado de Assis.”
Já Zeza é de um sutil sarcasmo. Os contos deste “Suíte dos
viventes” diferenciam-se dos textos daquele “O herbanário de tia Finha e outras
curtas estórias”, de 2016, pelo humor embutido na situação mais dramática. É
como ouvir uma boa piada no velório. Se lá é impossível não rir da
circunstância, por aqui a cena beira a tragicomédia. Veja-se o conto “Atire a
primeira pedra”:
“Agora estava só. Num ímpeto de raiva, quebrou todos os
porta-retratos onde apareciam fotos do casal nos diversos lugares em que tinham
viajado — resorts, ilhas paradisíacas, estações de esqui — em sucessivas luas
de mel. Pegou seu revólver que estava guardado há muito tempo no guarda-roupa.
Rodou o balão e deu um tiro no quadro da Santa Ceia, pendurado na parede da
sala de jantar. Acertou em Judas”.
Os contos de Zeza estão impregnados de cotidiano, beirando o
banal, por vezes resvalando na crônica. Problemas familiares, quase
rodrigueanos, entremeados de perturbadores dramas de consciência. Há humor, há
poesia e, mais importante, há verossimilhança. Às vezes ele flerta com o
realismo fantástico, mas nada do que escreve contraria a verdade. Como convém a
qualquer boa obra de ficção. E as possíveis previsibilidades são superadas pela
sutileza dos desfechos, arrematados quase sempre por genuínas surpresas.
Zeza Vasconcelos, nome artístico do médico José Vasconcelos
dos Anjos, também é autor de um romance, “Sara”, de 2017, e já tem no prelo
novo livro no mesmo gênero.
O caderno de Tântalo
O humor no “O caderno de Tântalo”, de Augusto de Melo, está
nos gestos e atitudes do protagonista, Abílio Marafuz. É um romance farsesco e
epistolar, nesse caso monológico, obra composta pelos textos do diário do
personagem-narrador, um gráfico aposentado que vive entre a capital e quase
recluso no sítio em Laranjeiras.
“A criatividade e o tom de sátira permeiam a narrativa. O
autor retrata, entre outras coisas, a Aracaju dos idos de 1990, apressadamente
ocupada por prédios residenciais, para tratar de um ‘intrigante’ segredo: quem
escolhia os nomes pomposos de todos esses prédios?”, indaga a professora Denise
Gaujac, que assina a orelha do livro.
“Abílio Marafuz veio para ficar e já tem um cantinho
reservado na galeria de personagens da nossa literatura. Não há como esquecer
do seu suplício e da sua obsessão por conhecimento através da leitura e,
principalmente, amor ao livro. Pode até ser um amor meio torto, safado, mas
amor ao livro. No fundo, uma maneira bem-humorada de se homenagear o livro
impresso”, observa o professor Herivelto Couto, que apresenta o romance de
estreia de José Augusto Melo de Araújo, o também professor, agora Augusto de
Melo, o escritor.
Escrevem porque pensam
Assim como Amaral Cavalcante, os escritores Zeza Vasconcelos
e Augusto de Melo também leram no livro do mundo e enxergam além dos limites da
aldeia. Alguém se habilita a ser um Amando Fontes, um Hermes Fontes, Gilberto
Amado, Genolino Amado, Alina Paim, Nélson de Araújo, Mário Cabral, Francisco
Dantas, Antonio Carlos Viana? Quem sabe?
A originalidade é exigência da caminhada e isso evoca, de
novo, o rigoroso Schopenhauer: “Há três tipos de autores: em primeiro lugar,
aqueles que escrevem sem pensar. Escrevem a partir da memória, de
reminiscências, ou diretamente a partir de livros alheios. Essa classe é
numerosa. Em segundo lugar, há os que pensam enquanto escrevem. Eles pensam
justamente para escrever. São bastante numerosos. Em terceiro lugar, há os que
pensaram antes de se pôr a escrever. Escrevem apenas porque pensam. São raros.”
(Texto publicado na revista Cumbuca Nº 26, março de 2020)
O texto acima se trata da opinião do autor e não representa
o pensamento do Portal Infonet.
Texto reproduzido do site: infonet.com.br
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