Navio mercante Baependi, o primeiro da noite de horror
Publicado originalmente no site do Portal INFONET, em 15 de agosto de 2020
Terror e “Malafogados”
Por Lúcio Prado (do blog Infonet)
Agosto de 1942. Cenário de guerra. O império nazista está no
auge, a Europa dominada, com exceção da Grã Bretanha, que resiste bravamente e da península ibérica,
poupada pelo Eixo. Nessa altura, os Estados Unidos já são beligerantes, após
ataque à base de Pearl Harbor.
O governo brasileiro, até então hesitante, finalmente toma
posição favorável aos aliados na Segunda Guerra e Hitler despacha seus
submarinos para o Atlântico Sul, para as costas do Brasil, fugindo da ameaça
americana. A ordem era de promover ações de sabotagem e torpedeamento de portos
e embarcações brasileiras, visando impedir a rota de suprimentos e o
deslocamento de tropas. Quando os submarinos já estão na região, a ordem é
estrategicamente suspensa. Mas eles não perdem a viagem.
Um deles chega bem pertinho da costa baiana e sergipana. O
submarino U-Boat 507, comandado pelo Capitão-de-Corveta Harro Schacht, no
trajeto de Recife para Salvador, passando pelo litoral sul de Sergipe, avista o
navio Baependi, nas proximidades da foz do Rio Real, que segue de Salvador para Recife.
Comandante do U-507 Harro Schacht
O relógio marca 19 horas do dia 15 de agosto. Dois certeiros
torpedos afundam o navio mercante em quinze minutos, ceifando a vida de
duzentos e setenta pessoas, muitas delas mulheres e crianças. Somente trinta e
quatro conseguem sobreviver, chegando exauridos à praia do Saco no transcorrer
do dia seguinte, alguns deles agarrados aos destroços e a maioria apinhada no
único bote que sobra do naufrágio.
Horas depois, o U-507 avista o navio Araraquara, que tem
igual destino. Não tarda, na mesma rota vem o Aníbal Benévolo, que entraria no
porto de Aracaju, proveniente do Rio de Janeiro, com passageiros sergipanos.
Também vai a pique atingido por torpedos, por volta das 4 horas da madrugada.
Em suma, três navios são afundados, um atrás do outro, deixando grande número
de mortos e náufragos, num espaço de menos de dez horas. A tragédia do Baependi
é a maior entre todas as que se abatem sobre os navios brasileiros durante a
Segunda Guerra Mundial. Em nenhum outro torpedeamento há tantas vítimas. Somado
os três navios afundados, o ataque do U-507 causa a morte de 551 brasileiros.
No dia 17, o coronel Augusto Maynard Gomes, interventor
federal que governa o estado com mãos de ferro toma o seu café da manhã em
palácio quando é alertado por oficiais da marinha que o “Aníbal Benévolo”, que
deveria chegar em Aracaju no dia anterior, não dera sinal de vida.
Preocupado,
manda acionar Walter Baptista. Coordenador de um grupo de aviadores amadores
que havia recebido do governador Eronides Carvalho, em 1939, um avião para o
aeroclube de Sergipe, Walter fazia voos de treinamento ao lado de outros
pilotos amadores, entre eles Lourival Bomfim, Durval Maynard, Lindolfo
Calazans, Valter Rezende, Arivaldo Carvalho e Evandro Freire. Quando a guerra
se desloca para o Atlântico Sul, essas pequenas aeronaves passam também a
vigiar as nossas praias, com incursões de reconhecimento pelo litoral
sergipano, logo ao raiar do dia. Na época, o Aeroclube já contava com cinco
teco-tecos. Maynard pede a Walter para que sobrevoe o litoral sul na tentativa
de descobrir o motivo do atraso do navio. As notícias de torpedeamento de
navios brasileiros em rotas internacionais já eram conhecidas, mas ninguém
ainda imaginava que a guerra estivesse tão próxima. Ele chama Lourival Bomfim,
médico e companheiro de aventuras, também aviador e juntos decolam. O que eles
veem é desolador e sem ainda saber, são expectadores do fim de uma noite de
tragédias e do início de um dia de lágrimas.
Corpos misturados a restos das embarcações, nas areias da
praia, encontram mais de cinquenta. Até então não sabem ao certo o que teria
provocado a tragédia. O que poderia ter sido um inesperado naufrágio revela-se,
porém, em dolorosa tragédia. Walter e Lourival chegam a ver, do alto, pessoas
saindo da água, cambaleantes, em trapos, feridas e ensanguentadas. Aterrisam o pequeno avião na areia da praia,
prestam os primeiros socorros e então
ficam sabendo, atônitos, o motivo real do ocorrido. Pescadores e moradores
dessas regiões ainda inóspitas e de difícil acesso, presenciaram o terror nas
suas portas e ajudaram também no esforço de resgatar vítimas.
Zamir de Oliveira, médico sobrevivente do Baependi
Entre os sobreviventes, o médico Viterbo Storry, que no
momento do ataque ao Baependi, conversava no convés com outro médico, Zamir de
Oliveira. Ambos haviam sido nomeados para o Serviço Nacional da Peste em
Pernambuco. Tive contato recente com familiares de Zamir que me contaram toda a
sua dramática história, desde o atendimento inicial em Estancia, a
transferência para Aracaju e posteriormente para o Rio de Janeiro, onde foi
recebido com festa.
Muitos feridos foram levados a Estância, onde receberam
atendimento no Hospital Amparo de Maria, graças à ação dos médicos Jessé
Fontes, Clovis Franco, Pedro Soares, entre outros. Os feridos não paravam de
chegar. Na praia os corpos inertes, sem vida, são enfileirados e para lá se
dirigem forças policiais acompanhadas do Dr. Carlos de Menezes, médico legista que, com a ajuda do Dr. Aloysio
Coutinho Neves, autopsia os cadáveres, descrevendo as lesões encontradas. Além
de corpos mutilados, muitos utensílios deram na praia, sendo muitos deles
saqueados e levados por curiosos, como troféu.
Boia presumidamente pertencente ao Aníbal Benévola.
Acervo do Memorial do Judiciário
Os aviões do Aeroclube também pousam nas praias de Atalaia e
do Mosqueiro, onde dezenas de corpos, trazidos pela mar, perfilam um quadro
dantesco e aterrorizador.
Os sergipanos, em estado de choque, agora com a grande
guerra “à porta”, temem que ela se alastre por toda a cidade. Fazem
treinamentos e à noite, com a cidade às escuras, recolhem-se aos seus lares.
Com a fuga dos submarinos, a sensação de alívio é geral, não sem os traumas que
levam a população ensandecida a promover tentativas de linchamento de
imigrantes alemães e italianos, como a que acontece com a família Mandarino,
com o patriarca Nicola Mandarino sendo acusado de colaborador e espião do
governo fascista. Acusação nunca provada.
Outros torpedeamentos ainda ocorreram na mesma rota
destruidora do U-507. Em 17 de agosto, no litoral norte da Bahia, o Arará e o
Itagiba são afundados pelo comandante Harro, resultando em mais cinquenta e
seis mortes.
A tragédia no litoral sergipano desencadeia de pronto a
reação do Governo brasileiro. Em 22 de agosto, o presidente Vargas reúne seu
Ministério, que aprova por unanimidade a situação de beligerância entre o
Brasil e as nações agressoras. Em 31 de agosto, finalmente, o Brasil declara
guerra à Alemanha e à Itália.
Harro Schacht, carrasco dos navios mercantes brasileiros,
não fica impune e é morto quando o U-507 afunda com toda a sua tripulação em 13
de Janeiro de 1943 no Atlântico Sul, atingido por bombas de um avião americano
Catalina.
Passados quase 80 anos do torpedeamento dos navios mercantes
brasileiros nas costas de Sergipe e da Bahia, muita coisa ainda tem pra ser
conhecida, como a própria razão dos ataques, a rota seguida por muitos
sobreviventes até chegar a povoados e hospitais, principalmente o de Estância,
o destino dos “malafogados”, a ação dos saqueadores, o destino de muitos corpos
nunca localizados, o perfil dos aviadores amadores civis que participaram do
esforço de guerra, entre outros mistérios.
O descaso e a ingratidão dos homens fazem com que esse
episódio, ao mesmo tempo épico e dramático, seja desconhecido da maioria dos
sergipanos. Entretanto, notícias auspiciosas aos poucos vão chegando, a exemplo
de novos trabalhos de historiadores vinculados à UFS e à UFBA, de pesquisadores importantes,
como o professor Luiz Cruz (Luizão), além do recente surgimento do Grupo
Especial para Estudos da FEB – Grusef, que vem empreendendo ampla discussão
sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Texto e imagens reproduzidos do site: infonet.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário