o barco de fogo é objeto de competição em Estância
Publicado originalmente no site do "Jornal do
Dia", em 14/06/2015.
Estância: do rastro de fogo ao batuque das pisadas.
Um rastro de fogo rasga a escuridão, enquanto tamancos
estalam no chão e faíscas duelam no salão. Assim é Estância, no mês de um dos
festejos mais esperados do ano, o São João. Com uma cidade cenográfica montada
em praça pública, bandeirolas coloridas que contrastam com o azul do céu, e
barracões de produção de buscapés e espadas, o município berço da cultura
sergipana segue com sua tradição.
No mês de junho é quando acontece a comemoração da festa
caipira, porém, para que tudo saia como manda o figurino, os moradores de
Estância começam a preparação muito antes. A cidade vira polo de produção de
artefatos de pólvora, vestidos juninos, licores, comidas típicas, e a economia
também se movimenta em torno das apresentações de shows musicais.
Quem chega a Estância vê guerras e armas de fogo, mas não
dessas que marcam as histórias de conflitos mundiais. No município do sul
sergipano tudo não passa de uma brincadeira, na qual, munidos de buscapés e
espadas, homens e mulheres saem às ruas para duelar e soltar no ar os artefatos
que riscam com faíscas o território do interior.
Na arena de competições, barcos de fogo saem em uma corrida
esfuziante. Enfeitados com mini bandeirolas e papel laminado, eles são
impulsionados pelas explosões da pólvora concentrada em espadas,
estrategicamente colocadas nas extremidades dos barcos.
Em outro ponto da cidade, em resposta ao batuque dos
tambores, soam as pisadas dos tamancos. A Batucada segue com o balançar dos
vestidos e o cantar dos repentistas, que entoam versos da cultura popular.
A alegria dos quadrilheiros também marca ponto no São João
estanciano. Vestidos com babados, chapéus caipiras e chinelos de couro,
chamados priquitinhas, são as vestes oficiais. Com passos bem ensaiados,
bailarinos seguem dançando em pares e em ritmo animado. Anarriê e alavantu são
as palavras de ordem do marcador, que comanda a moçada.
A cultura junina em Estância.
"Estância traz para Sergipe a valorização de seus
potenciais culturais, que têm como essência variantes como Batucada, quadrilhas
e fogueteiros". É isso que afirma Newiton dos Santos, secretário de
Cultura, Juventude e Desporto do município. De acordo com ele, a cidade sempre
foi marcada por festas juninas nas portas das residências, com direito a fogueiras,
brincadeira de corrida de saco, quebra bote e pau de sebo. A presença de
sanfoneiros também era constante, e a vizinhaça se reunia em confraternizações
que duravam toda a noite.
Telas faziam a segurança de portas e janelas das casas. Tudo
isso por conta da soltura de espadas e buscapés, que acontecia a vontade pelas
ruas do município. Porém, Newiton conta que esta tradição precisou ser
alterada, por conta do uso de vidros na construção e reforma das residências e
por medidas de segurança. Atualmente a soltura é permitida na área do
forródromo. Mas, para relembrar os velhos tempos, a população tomou uma
decisão, contada pelo secretário de cultura.
O estalar das faíscas.
Pega o bambu, seca, cozinha as tabocas [pedaços] e enxuga.
Enrola a parte externa com cordão, coloca barro e pólvora, compacta e pronto.
Esse é o resumo do passo a passo de produção de buscapés e espadas. O processo
de criação tem várias etapas e, segundo o fogueteiro Jorgivaldo dos Santos, há
uma diferença primordial na criação dos artefatos: o buscapé tem o fundo
fechado e possui pólvora de estouro. Com relação ao uso, enquanto a espada pode
ser manuseada, o buscapé, após ser aceso, rodopia sozinho pelo ar.
Os artefatos de pólvora começam a ser produzidos em
dezembro, segundo conta o fogueteiro. Ele informa que em sua barraca, onde
também atuam o irmão e o cunhado, são produzidos cerca de 12 mil fogos por ano.
O faturamento anual gira em torno de R$ 11 mil.
Rastro de fogo.
Patrimônio Cultural Imaterial de Sergipe, o barco de fogo é
objeto de competição em Estância. No mês de junho, uma acirrada disputa
movimenta a programação festiva. De acordo com Newiton dos Santos, a avaliação
dos jurados é feita com base em três requisitos: beleza, criatividade e se o
barco cumpre corretamente o percurso. O secretário explica que a alegoria,
através de um fio de aço, deve seguir de um ponto A até um ponto B e voltar até
a área de partida.
"Atualmente, já temos barcos de fogo que vão e voltam
de frente. Ou seja, já criaram um dispositivo para que barco faça a volta no
arame. Tem até gente que inventou variantes do barco, como avião e bicicleta.
Para enfeitar, os fogueteiros colocam chuvinhas e ainda pistoletes para
estourar e anunciar a saída do barco", informou Newiton. A competição de
barco de fogo acontece tradicionalmente em 24 de junho. Já o dia em comemoração
é o 11 de junho, quando ocorre o festival em praça pública.
O fogueteiro Jorgivaldo dos Santos diz que 24 de junho é o
dia mais bonito do ano, pois é a data da competição de barcos de fogo.
"Todos os anos eu coloco barco na corrida. Fico ansioso e orgulhoso em ver
o povo aplaudindo essa arte, pois não é todo mundo que pode ter acesso. Também
me sinto feliz, e o que importa para mim é ver o barco em alta
velocidade", relatou. Sobre a tradição, Jorgivaldo é enfático: "a
cultura do barco não pode acabar, pois representa a cultura de nosso
estado".
No batuque das pisadas.
A brincadeira conhecida como pisa pólvora lembra a confecção
de espadas e buscapés. De acordo com Josefa Dias Assunção, conhecida em
Estância como Dona Zefinha, a Batucada começou quando alguns homens cantavam e
dançavam em volta do pilão, e um grupo de mulheres resolveu se juntar com a
batucada. Daí em diante, a manifestação cultural ganhou forma e hoje as
apresentações acontecem durante os festejos juninos.
Para marcar a batida dos pés no chão, as mulheres usam
tamancos de madeira sucupira que, segundo D. Zefinha, não lasca e produz um bom
som. As coreografias têm dois tipos de passos. "Os bonecos vão à frente do
grupo da Batucada. Eles dançam igual aos outros integrantes. As músicas são
entoadas através de tambores, pandeiros e ganzás [chocalhos]. E o principal da
nossa brincadeira é a marcação", explicou, acrescentando que o grupo pode
se apresentar em forma de cortejo ou em local específico.
O grupo Busca-pé de Dona Zefinha foi fundado em 1985 e é um
dos mais antigos de Estância. São 30 anos de tradição na cidade do sul
sergipano. De acordo com Josefa, a melhor parte dessa manifestação cultural é o
estalar dos tamancos no solo. "Acho bonito, sinto prazer e adoro",
comentou, acrescentando que, junto com ela brincam também membros de sua
família.
E é em volta dessas produções populares que o município de
Estância mantém, ano após ano, a tradição junina. A cidade se reveste de cores,
texturas e detalhes que levam os brincantes a viver a cultura do São João em
sua forma mais simples.
Texto e imagem reproduzidos do site: jornaldodiase.com.br
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