segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Entrevista com Antonio Carlos Viana

Foto: Divulgação.

Publicado originalmente na Revista Literatura.

Entrevista com Antonio Carlos Viana.

"Fica difícil ser otimista num mundo em que não há muitas saídas para quem está à margem de tudo, sobretudo da educação. Porque, no nosso país, a educação que se dá ao pobre é tão ruim que no futuro não vai lhe abrir porta alguma. Enquanto não repararem esse mal, continuarei desacreditando no Brasil.".

Por Rafael Rodrigues

O contista sergipano Antonio Carlos Viana escreve sobre o inevitável e o inusitado da vida. Mas também sobre o risível, o ridículo, o irremediável. Cine Privê, seu terceiro livro de contos, é uma obra de rara qualidade e simplicidade. Não obstante a diversidade e as virtudes da literatura brasileira, poucos são os escritores que conseguem realizar obras tão coesas e harmoniosas. E tão sóbrias. Há, nos contos de Cine privê, temas e situações que os autores menos experientes adoram abordar em seus livros, como sexo e violência gratuita. Viana, no entanto, os retrata por outros prismas: sexo se transforma em sensualidade; violência em crueldade. O que falta à maioria dos nossos escritores - seja pela pouca idade, pela inexperiência ou mesmo pelo pouco talento - sobra em Antonio Carlos Viana: classe.

Apontado por muitos como um dos mestres do conto contemporâneo, sendo suas obras anteriores, Aberto está o inferno e O meio do mundo e outros contos, elogiadíssimas, Antonio Carlos Viana, apesar de criar personagens pobres e sofridos, diz não ser um escritor engajado. Na entrevista a seguir, realizada por e-mail, Antonio Carlos Viana fala sobre sua carreira, sobre Cine Privê e sobre a literatura brasileira contemporânea.

CP literatura - Nascido em Aracaju, o senhor hoje é doutor em Literatura Comparada pela Universidade de Nice, na França. Como isso aconteceu? Poderia nos contar um pouco sobre sua trajetória?

Sempre gostei muito de estudar, sobretudo Teoria Literária, mesmo antes de pensar em ser escritor. Acho que quem se dispõe a escrever precisa entender bastante de teoria para saber por que caminhos está andando. Eu me formei em letras em Aracaju, depois fiz mestrado em Teoria Literária na PUC do Rio Grande do Sul, onde encontrei uma verdadeira mestra, a professora Regina Zilberman. Foi ela que me incentivou a continuar escrevendo. Dois anos depois de terminar o mestrado, eu nem pensava em fazer o doutorado, mas me foi oferecida uma bolsa para fazê-lo, na França. Escolhi Nice porque conheci um professor da universidade de lá que se colocou à minha disposição para ser meu orientador. Além do mais, a cidade era muito convidativa. Não tive dúvida e me mandei pra lá com família e tudo. Foi um tempo de muitas descobertas, inclusive da obra de Paul Valéry, que eu jamais havia lido no Brasil. Foi sobre a poética dele e de João Cabral que fiz minha tese.

CP literatura - O senhor já morou em Porto Alegre, Rio de Janeiro e Paris, mas sua literatura está repleta de personagens interioranos. Por que essa preferência?

Quando começo a escrever, não escolho o tema, nem personagem, nem lugar. Deixo que as coisas venham da forma mais livre possível, sem censura. Acredito que o mais forte mesmo para quem escreve é a memória, a infância. Então meus contos falam de um lugar interiorano porque passei grande parte de minha infância num lugar afastado de todo contato urbano, em que a luz era de candeeiro, o contato com a terra era o principal. Convivi com pessoas simples, trabalhadores rurais, seres sem futuro, como ainda acontece hoje, no País. Muitos contos buscam nessa memória matéria para virem à luz, mas nada planejado. Alguns dão certo, outros não. Mas também escrevo sobre personagens urbanos, haja vista o do conto Cine Privê - mais cidade grande, impossível. O ponto de contato maior entre esses dois mundos, o rural e o urbano, é o de sempre; falo de seres à margem, os esquecidos pelo sistema.

CP literatura - Boa parte dos contos de Cine Privê tem personagens que estão à margem da sociedade, quase todos passando por dificuldades financeiras. Não se pode dizer que sua obra seja de denúncia, mas muitos problemas são ali expostos. Dito isso, o senhor diria que é um escritor engajado?

Nunca me senti um escritor engajado, nem escrevo com essa pretensão. Escrever sobre personagens que estão à margem tem muito a ver com o fato de eu ter vivido minha vida cercado por eles. Me lembro da miséria dos trabalhadores, da falta de perspectivas, da degradação moral de suas famílias. Eu era muito observador. Minha família também não era de grandes posses, tinha um sitiozinho de onde tirava parte de sua subsistência. A gente escreve com mais verdade sobre mundos que conhece... Claro que a imaginação também tem a sua parte. Aproveito o que a memória me traz, mas, para chegar a ser literatura, esse material precisa ser retrabalhado. Não existe nenhum conto meu que seja autobiográfico, mas há personagens que nasceram de pessoas que conheci, com as quais convivi. Aproveito pedaços de um, de outro, e monto a personagem, que passa a ter vida ficcional, independente daquela que lhe deu origem. Algumas situações também aconteceram, mas não daquele jeito, como conto.

CP literatura - O que o senhor acha da expressão "literatura regionalista"? Não seria um termo mesquinho, visto que os conflitos humanos ocorrem em qualquer lugar do mundo?

Essa me parece uma marca com que todo escritor do Nordeste vai ter de conviver ainda por muito tempo. Sempre digo que aquela "literatura regionalista" a que se referem não existe mais, a do pitoresco, dos tipinhos engraçados que falam errado. Quem ainda a faz não encontra lugar na literatura. Não estou dizendo que esses tipos desapareceram, mas, ao colocá-los numa obra de ficção, é preciso dar-lhes outra dimensão, torná-los mais complexos, em situações que os revelem como seres perdidos de si mesmos. Acho que nenhum escritor pode fugir do regional e sua dimensão de humanidade. Se olharmos bem, todo escritor fala do que está a sua volta. Calha de eu estar no Nordeste, e é disso que posso falar com mais verdade. A gente parte do local, mas precisa ampliá-lo até alcançar ressonâncias maiores. Se o escritor não faz isso, falha.

CP literatura - Em algumas histórias os personagens conseguem ver algo de bom mesmo nas tragédias, nas situações difíceis. É a isso, essas pequenas fagulhas de esperança, que devemos buscar? Seus contos são, no fundo, otimistas? O senhor é um otimista?

Eu sou um pessimista até o último grau. Se algumas personagens, como o menino do conto Santana Quemo-Quemo, que abre Cine Privê, descobre algo de bom no meio da desgraça, não significa para mim a esperança, mas um elemento de humor - humor ácido, é verdade - que faz ainda maior o drama. Fica difícil ser otimista num mundo em que não há muitas saídas para quem está à margem de tudo, sobretudo da educação. Porque no nosso País, a educação que se dá ao pobre é tão ruim que no futuro não vai lhe abrir porta alguma. Enquanto não repararem esse mal, continuarei desacreditando no Brasil.

CP literatura - O conto é um gênero ainda subestimado? O senhor pensa em escrever algo maior, como uma novela ou mesmo o romance?

O conto passou um tempo meio esquecido das editoras, mas hoje vejo que há uma aceitação maior. Confesso que nunca entendi por que acham que o romance dá mais trabalho que o conto, porque o trabalho de um é tão árduo quanto o do outro. Um bom conto pode levar anos para ser feito. É que o romance precisa de fôlego, isso é que é decisivo. Fôlego e paciência. O conto já exige um poder de síntese, que também não é fácil. Poder de síntese e capacidade de surpreender o leitor. Eu não tenho vontade de escrever algo mais longo, não tenho o fôlego necessário e também sou muito impaciente. Se escrever um conto já me deixa sem dormir direito, imagine escrever um romance, com os mil caminhos que ele exige.

*Rafael Rodrigues (rafaelnikov@gmail.com) é editor-assistente e colunista do site Digestivo Cultural, além de colaborador de outros veículos. Mantém os blogs Entretantos (www.entretantos.com.br) e O Leitor (www.oleitor.blog.br). Mora em Feira de Santana, Bahia.

Texto e imagem reproduzidos do site: literatura.uol.com.br

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