quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Elites sociais sergipanas: Os fazendeiros

Capa do livro (imagem: divulgação).

Publicado originalmente no blog Primeira Mão, em 16/03/2014.

Elites sociais sergipanas: Os fazendeiros
Por Afonso Nascimento*

Recentemente, o historiador Ibarê Dantas publicou um novo livro que enfoca a trajetória de quatro membros de sua família, todos eles fazendeiros de lá das bandas de Riachão, em Sergipe. É uma obra de memórias familiares que recebeu três resenhas positivas publicadas neste mesmo jornal. Em razão disso, resolvi não escrever mais uma, porém fazer um comentário geral sobre esse que é o seu décimo livro (DANTAS, Ibarê. Memórias de Família. O Percurso de Quatro Fazendeiros. Aracaju: Editora Criação, 2014).

Nada direi sobre o seu autor - a não ser no último parágrafo deste texto - pois se trata de um intelectual assaz conhecido dos leitores interessados em história política sergipana. Entrarei diretamente no livro. Ele tem duzentas e sessenta e seis páginas, contendo quatro anexos. Na capa e na contracapa são expostas duas fotografias da Fazenda Boqueirão, uma tomada pelos fundos e outra que mostra a frente da casa alta e com telhas romanas. A foto da capa, além da casa e do curral, exibe um rio e vastas extensões de terras com árvores esparsas. A outra foto expõe, no alpendre da casa, cinco gaiolas de passarinhos, uma porta e quatro janelas. O livro está estruturado em quatro capítulos correspondentes aos quatro fazendeiros cujos percursos são revelados. O terceiro capítulo, referente ao pai do autor, é, de longe, o mais alargado. A sua filha Sílvia Dantas escreveu o prefácio.

O livro é uma mistura de obra de historiador e de memorialista. Além de narrador, Ibarê Dantas é personagem e, naturalmente, fonte, pois, num tipo de trabalho que se quer de memórias, deve ter ouvido muitas histórias de sua família ao longo de sua vida - como acontece com qualquer família de qualquer classe social. Enquanto membro de uma família de fazendeiros, como era de se esperar, o autor mostra um grande conhecimento sobre como vivem os fazendeiros, os quais menciona como "elite local", o que, dito com outras palavras, significa "aristocracia rural" sergipana do gado. Voltando a falar de fontes, Ibarê Dantas recorre a fontes orais na forma de depoimentos de parentes seus e de outras pessoas, do seu arquivo privado sobre a sua família, de documentação familiar e de instituições públicas a que teve acesso, de jornais, entre outras.

O livro trata de um universo social que me é completamente desconhecido, ou seja, o mundo dos fazendeiros sergipanos. Quem são pessoas que compõem essa fração da classe dominante sergipana mais antiga, posto que Sergipe nasceu como uma grande fazenda que produzia gado para abastecer, no período colonial, aos mercados de Pernambuco e da Bahia? Cuja importância econômica foi diminuída quando o território sergipano foi transformado numa grande plantation de cana de açúcar? E que voltou a ter a sua relevância no PIB sergipano quando a economia canavieira perdeu espaço na competição com a produção de cana de São Paulo nos anos 1930 e 1940?

Pelo que entendi (se entendi) da leitura do livro, as famílias dos fazendeiros lembram "empresas" ou "organizações" com fins lucrativos. Com efeito, os fazendeiros, além de venderem as mercadorias produzidas em suas terras (gado, leite, cavalos, produtos agrícolas diversos, etc.), também compram e vendem fazendas. Existe, mesmo, um mercado de fazendas. Aqueles fazendeiros bem sucedidos aumentam seu patrimônio adquirindo propriedades rurais de outros membros desse grupo social. É por conta disso que, na narrativa de Ibarê Dantas, há um grande espaço dedicado às heranças, aos cartórios, à transmissão de terras de parentes para parentes e não parentes, aos inventários, etc. Não deixou de chamar a minha atenção o seu recurso feito por fazendeiros aos bancos públicos para empréstimos, os lucros e as perdas, bem como a necessidade de lidar com problema como secas, estiagens, doenças dos animais, etc.

O problema da mortalidade infantil entre as famílias de fazendeiros não passou desapercebido. A ideia que eu tinha era a de que essa questão tinha a ver somente com as classes trabalhadoras rurais. Todavia, com leitura do livro de Ibarê Dantas, ficou a impressão de que a mortalidade infantil também afetava as classes abastadas sergipanas. Nessa mesma linha, a existência de grandes proles entre famílias de fazendeiros era algo muito corrente, no período tratado pelo livro, a saber, da primeira metade do século XIX a fins do século XX. Por conta disso, posso imaginar o problema que deveria ser a questão da transmissão de bens aos herdeiros - muitas vezes realizada antes da morte desses grandes latifundiários. Se os futuros herdeiros não se casassem com pessoas da mesma classe, inevitavelmente ocorreria um relativo empobrecimento dessas pessoas. Embora não coubesse num trabalho de memórias, o livro poderia ficar muito mais rico se pudesse explicar as estratégias matrimoniais dos fazendeiros para seus filhos e suas filhas, como formas de manter ou aumentar os seus patrimônios e reproduzir a sua classe social.

Ibarê Dantas pouco fala sobre os vaqueiros desses fazendeiros. Em relação ao primeiro parente cujo percurso é reconstituído, o autor diz que ele tinha uma escravaria e sobre isso mostra documentação. Na parte do livro em que trata de seu pai, disse que teve pequenos problemas com vaqueiros na Justiça do Trabalho. Vale lembrar que os vaqueiros somente neste século XXI estão sendo reconhecidos como profissão, ou seja, quase quinhentos anos depois de se firmarem como classe oposta àquela dos fazendeiros. Nada também escreveu sobre a questão da reforma agrária tão importante que foi nos anos 1950 e 1960 no Brasil. Mas menciona antes o problema da falta de braços advindo com o fim da escravidão em Sergipe - um problema também abordado por Josué M. dos Passos em seus dois livros sobre a história econômica de Sergipe.

A política dos fazendeiros é tratada nos três capítulos – embora ele tente minimizar o papel de sua família na política sergipana. O maior destaque dado por Ibarê Dantas é a respeito de seu pai, político ligado à UDN. Faz, a respeito dele, uma longa prestação de contas documentada de desempenho como prefeito da cidade que carrega o seu sobrenome, ou seja, Riachão do Dantas. Por outro lado, Ibarê Dantas insiste sobre a atenção dada por seus parentes fazendeiros à educação de seus filhos. Isso merece uma reflexão alongada que não pode ser feita aqui. Penso que a educação superior passa a ser central na socialização de pessoas de sua classe e de sua geração, quando Sergipe entra num rápido processo de modernização nos anos 1950 e 1960,momento em que o diploma universitário adquire um alto valor numa sociedade que vai se tornando muito competitiva. Membros de sua classe que não souberam fazer essa transição, perderam o trem da história.

Aparentemente sem ter tido essa pretensão, Ibarê Dantas escreveu um livro sobre as elites sociais sergipanas, colocando-se ao lado do trabalho de Orlando Dantas (A vida patriarcal em Sergipe), que se refere às elites ligadas às plantations de cana-de-açúcar, ao passo que o historiador consagrado aborda as elites sociais criadoras de gado. Em minha opinião, Ibarê Dantas memorialista aparece menos que o Ibare Dantas historiador. Notei muito bem o memorialista quando ele descreve a sua casa ou as brincadeiras de meninos. Esse aspecto da narrativa surge com força quando ele traça perfis de pessoas queridas dele. Aí Ibarê Dantas, sempre reservado e contido, mostra quais os valores que ele aprecia nas pessoas, logo os seus valores. Na biografia de seu pai, ele se deixa aparecer várias vezes, torna-se personagem da história familiar que conta, inclusive através de fotografias. Isso me fez pensar: por que ele não escreve suas próprias memórias como indivíduo, como professor, como pesquisador, como intelectual, etc., na primeira pessoa? Tenho certeza que tem muito a dizer. A sua participação tímida na biografia de seu pai foi um bom começo. Os seus amigos, leitores e admiradores já estão no aguardo.

*Professor de Direito da UFS.

Texto reproduzido do blog: primeiramao.blog.br

Um comentário: