sábado, 26 de novembro de 2016

O Bonde na Literatura Sergipana, por Amâncio Cardoso



Imagens para simples ilustração de artigo, postado por MTéSERGIPE.
Créditos das Imagens - Pesquisador norte-americano Allen Morrison,
de New York/EUA (Reproduzidas do site: novomilenio.inf.br).
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Nas fotos, bondes elétricos circulam pelas ruas da capital sergipana no início do século XX. Aracaju foi a última capital estadual no Brasil a instalar bondes com tração animal e também a última a contar com bondes elétricos, 
sendo também a única cidade sergipana a ter bondes.
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Publicado originalmente no Blog Primeira Mão, em 27/12/2015.

O Bonde na Literatura Sergipana
Por Amâncio Cardoso.[1]

Ao prof. Francisco José Alves (UFS-Dept. História),
por me apresentar o bonde na literatura.

Houve um tempo em que o aracajuano andava de bonde. Entre 1908 e 1925, os puxados por burros; e entre 1926 e 1951, os bondes elétricos.
Os bondes deixaram fundas marcas na vida e na memória dos citadinos. Isto se expressa, sobremaneira, nos escritos literários que evocam os antigos veículos; textos que apresentam o tempo dos bondes em Aracaju de forma lírica, saudosista, realista e até satírica. São sonetos, quadras, crônicas, monólogo e memórias. Estas obras rememoram aquele meio de transporte que mudou hábitos e estabeleceu costumes.
Iniciemos com a visão lírica e saudosista expressa por Jacintho de Figueiredo (1911-1999), publicada no livro Motivos de Aracaju, em 1955; uma homenagem, em versos, aos 100 anos da capital. O primeiro poema é “Crônica”. Nele, o poeta lembra com lirismo e saudade os bondinhos de tração animal na sua pitoresca lentidão, vencendo dunas e apicuns da antiga e tranquila Aracaju. Leiamos: “Os bondinhos de burro... – que poesia! .../ “Fundição”, “Santo Antônio”, “Circular” .../ Tempo feliz aquele! Não havia/ Essa pressa da hora de chegar! .../ (...)/ Mas a cidade, aos poucos, foi crescendo .../ Transpondo as dunas, apicuns vencendo,/ Tornando imprescindível a condução./ E em consequência, pelas ruas,/ Que ao tempo do bondinho eram tão nuas .../ Não mais aquela placidez de então!”.[2]

O segundo poema é “O Último Bonde”, no qual Figueiredo refaz o trajeto do bonde elétrico que rodava até 11 horas da noite, entre os bairros Santo Antônio e Fundição (final da atual avenida Ivo do Prado), e se recolhia no Aterro do Tecido (atual avenida João Rodrigues); onde se encontrava a garagem e a casa de força que transmitia energia aos bondes da E.T.E.A. (Empresa de Transportes Elétricos de Aracaju). Eis as duas últimas estrofes: “O último bonde, como era chamado,/ Vinha do Santo Antônio, acelerado,/ Fazendo a volta pela Fundição;/ Rua da Frente, Aterro do Tecido,/ Em busca do repouso merecido,/ Depois de percorrer léguas de chão”.[3]

É sintomático que o bonde seja o único tema abordado por duas vezes num livro de homenagem ao centenário de Aracaju. Assim, vê-se como o velho transporte tinha importância na vida da cidade e na sensível alma do poeta.
Mas o bonde não foi objeto apenas da poesia lírica. Poemas satíricos aparecem nos jornais. Em 1926, por exemplo, um certo “Léo” escreve cinco quadras (estrofes de quatro versos) satíricas sobre os defeitos e descarrilamentos dos novos elétricos: “Engasgado traz antonte,/ Na rua de Itabaiana,/ Encontrava-se um bondão,/ Da boa dona ÉTÉANA!.../ Trepados por sobre o cujo/ Os pobres dos condutores/ Gritavam desesperados:/ Que bondes encrencadores!/ (...) /Quando menos se esperava/ Um Jones apareceu,/ Que é isto, meus rapazes?!/ O que foi que aconteceu?/ - O bonde pulou da linha,/ E o arco se arrebentou!.../ Vosmecê seu Jone, vá/ Chamar seu Jone doutô!...”.[4]

“Boa Dona Étéana” é a ETEA, empresa que operava os bondes elétricos à época, como vimos. Os condutores eram funcionários que faziam cobrança das passagens e os “Jones” é uma alusão jocosa aos sócios proprietários da ETEA, João Campos e João Andrade. Um deles, se arvorava de engenheiro para consertar os bondes, mas o acusavam de não ter formação para tal, daí a alcunha irônica de “Jone doutô”.
A sátira se justificaria porque os sócios da “boa Dona Étéana” teriam sido privilegiados na concessão dos serviços dos bondes elétricos da capital pelo então governador Graccho Cardoso (1874-1950), que se tornara inimigo político tanto do diretor do Sergipe-Jornal, onde se publicaram as quadras, o deputado federal Antônio Batista Bittencourt (1893-1940); quanto do ex-governador, senador e líder do Partido Republicano, Pereira Lobo (1864-1933). Batista Bittencourt e Pereira Lobo fizeram pesadas críticas ao governo Graccho, de 1922 a 1926. Dentre elas, acusavam de corrompido o contrato de concessão dos serviços de bonde; o que motivou graves denúncias e sátiras políticas em diversas edições do Sergipe-Jornal controlado por eles.[5]

Ainda no campo da sátira, encontramos o monólogo “No bond”, publicado no jornal humorístico “O Espião”, editado em Aracaju de 1909. O autor, José Rodrigues Vianna, recitou os versos no Teatro Carlos Gomes (depois Cine Teatro Rio Branco, no centro da capital), trajando a farda dos condutores de bonde.
Rodrigues Vianna era diretor da Companhia Dramática, Lírica e Cômica, e fez diversas apresentações no antigo teatro. Seu monólogo faz o caminho inverso das reclamações neste serviço, pois eram comuns denúncias dos passageiros contra os condutores. Mas aqui temos um raro momento em que o condutor expõe, com humor, as desventuras de sua faina contra os passageiros. Dentre elas se destacam
- a cobrança do fiscal: “N’um bond cheio de gente/ Faço a cobrança geral,/ Destaco cupons a ufa/ Quando me surge o fiscal/ Tomando no assentamento/ Depois de várias contagens/ Sempre nos diz: Condutor;/ Olhe, faltam três passagens”.
- a solicitação de parada longe do ponto: “Não é só. Qualquer velhusca/ Quando lhe dá na ideia/ Manda parar de Palácio/ O bond lá na Cadeia”.
- o ensino aos idosos a pongar (subir no bonde em movimento): “Inda é preciso que a gente/ Cortês se faça mostrar/ Em ensinar à velhusca/ Como se deve ... trepar”.
- o não pagamento da passagem por algum malandro: “Qualquer pelintra querendo/ uma passagem engolir/ Pergunta com a cara dura:/ Condutor já vai partir?/ Ao nosso sinal se trepa/ Com a maior descaração.../ Mas quando o cobre pedimos/ Nos responde alevantado:/ Condutor, não seja ousado/ Deixe de amolegação!”.
Por tantos dissabores, o condutor por fim desabafa: “Não posso mais esta vida,/ Muita desventura esconde/ Por isso não quero ser/ Condutor, jamais de bond./ Vou entregar o apito/ Sacola, cupons e prego/ E com o doutor Venâncio/ Renovamente me emprego”.[6]

Saindo dos versos e passando para prosa, temos a crônica “Os Bondinhos” do professor e magistrado Bonifácio Fortes (1926-2004), publicada no Sergipe-Jornal em 1950; nos últimos suspiros dos bondes aracajuanos. Assim, todo o texto é um lamento por conta da iminente extinção dos “bondinhos” na capital. Por isso, escreve o autor, a cidade perdera seu “sentido poético”. O título da crônica no diminutivo já exprime certo afeto pelo veículo. Prova disso é que Bonifácio Fortes personifica os bondes, chamando-os de “heroicos bondinhos”, pelo fato de rodarem mais horas que o de outras cidades em ruas arenosas e de não terem seu maquinário renovado. Aracaju sempre possuiu os mesmos dez bondes elétricos e um reboque, desde 1926 a 1951, período em que o número da população aumentou significativamente.
Vamos a um trecho da crônica: “Heroicos bondinhos de Aracaju, infatigáveis veículos que giravam desde as seis horas da manhã até as 11 da noite, quase sem paradas, subindo a poeirenta rua do Bomfim ou as constantes areias da Pedro Calasans”. Em outra passagem, Bonifácio Fortes revela o amor dos aracajuanos pelos bondes: “O aracajuano ama os bondinhos no que eles têm de mais pitoresco, no que eles oferecem de mais anedótico, no seu próprio inconforto e vagareza”.[7]

Encontramos outras crônicas, mas agora numa página clássica de nossa literatura, “Roteiro de Aracaju”, de Mário Cabral (1914-2009), com primeira edição de 1948. O livro reúne diversas crônicas sobre a cidade, formando um guia sentimental. Extraímos duas em que os bondes são personagens principais.
Na primeira, “Os Transportes”, apesar do título Cabral aborda apenas sobre os bondes a burro e elétricos; deixando de lado outros meios. Fica patente, mais uma vez, como os bondes vincaram a memória dos escritores. Ele relembra linhas, trações, defeitos, horários e superlotação. Escreve: “Mesmo assim os bondes andam superlotados, gente em todos os lugares, pendurada dos lados, gente equilibrada, atrás, sobre o dorso do engate”.[8]

Ao contrário da primeira, a segunda crônica, “Os Bairros”, destaca o romântico passeio de casais de namorados nos bondes. Cabral relembra o “bonde dos namorados” que passava pelas fábricas do bairro Industrial, onde rapazes, inclusive o autor, esperavam a saída das operárias para levá-las nos bondinhos. Vejamos uma passagem: “Ali é Piturita que toma o bonde. Mais adiante é Neto, é Walter, é Armando da Farmácia, sou eu próprio, é mais meia dúzia de namorados. E o bonde segue dançando, aterro afora, rumo da cidade, cheio de namorados, exclusivamente de namorados”.[9]

Saindo da crônica passemos para memorialística; outro gênero literário que tomou o bonde de Aracaju como tema. Levantamos dois autores, Genolino Amado (1902-1989) e Murilo Melins (1928- ).
O imortal da Academia Brasileira de Letras, Genolino Amado, escreveu “Um menino sergipano” em 1977. Um dos capítulos de suas memórias (passadas na cidade natal, Itaporanga, e em Aracaju) se intitula “O Bonde”. Ele remonta ao tempo dos bondes puxados a burro em Aracaju. Na primeira frase sentencia com pilhéria: “Na terra dos inteligentes, bonde de burros”. Alude à plêiade da inteligência nacional nascida em Sergipe como Tobias Barreto (1839-1889), Silvio Romero (1851-1914), Manoel Bomfim (1868-1932), Fausto Cardoso (1864-1906), João Ribeiro (1860-1934), Gumercindo Bessa (1859-1913), Felisbelo Freire (1858-1916), entre outros.
Embora inicie com um chiste, o texto de Genolino é atravessado por líricas memórias dos bondinhos de tração animal. Escreve que o veículo foi um de seus “deslumbramentos” quando aportou em Aracaju ainda menino. E afirma que “a qualificação há de parecer excessiva, mas quem é pequeno engrandece as coisas. E aquele bondinho me maravilhou”.
Conta Genolino que o que mais o “encantou” não foi o bonde comum, mas o bonde especial, exclusivo do presidente (atual governador) do Estado. Relembra embevecido: “Era o bonde especialíssimo do Presidente, que, em noites de verão, nele passeava com algumas excelências da sua roda. Sem os bancos duros do bonde plebeu, tinha jeito de um pequeno salão, paródia de carro pullman, com poltronas de vime e iluminação que me parecia feérica. Dava gosto olhar. Dava também inveja. Que beleza!”.[10]

Outro memorialista dos bondes de Aracaju é Murilo Melins. Suas memórias evocam os bondes elétricos nos idos de 1940. Elas foram publicadas no livro “Aracaju romântica que vi e vivi, anos 40 e 50”, cuja primeira edição é de 1999. Assim como Mário Cabral, ele dedica aos bondes dois textos, quais sejam “Bondes” e “De bonde para o Bairro Industrial”.
Em “Bondes”, o autor apresenta fotos dos veículos e da usina geradora de energia que movia os vagões. Ele Confirma a procedência alemã dos elétricos de Aracaju. Nossos bondes foram comprados à fabrica Van der Zypen & Charlier, na cidade de Köln (Alemanha).[11]

Melins segue descrevendo os vagões, o funcionamento e as linhas, além da tripulação (motorneiro e condutor) e funcionários da empresa (limpadores de trilhos). O autor tem uma prosa graciosa e leve. A exemplo do trecho em que a empresa, para justificar a paralisação dos bondes por falta de energia, dizia em nota que havia quebrado o eixo do motor; com isso Melins nos brinda com a seguinte anedota: “Conta-se que um vendedor de quebra-queixo, que era tato, passando pelo estabelecimento do Diretor da Luz e Força, anunciando seu produto, gritou: ‘quebra eixo’, omitindo o ‘Q’ devido a sua deficiência. Funcionários do Diretor levaram o pobre homem à presença do chefe, e depois das devidas explicações ele foi liberado”.[12]

No texto “De bonde para o Bairro Industrial”, Melins sugere a um amigo um passeio imaginário de bonde por Aracaju dos anos 1940. Eles partem do Centro, próximo à praça Fausto Cardoso, em direção à avenida Augusto Maynard, apreciando paisagens, monumentos, instituições, hotéis, casarios, palácios, fábricas, estação de trem, ruas e praças até chegar ao ponto final, na praia do Bairro Industrial, mais precisamente na velha construção da “Chica Chaves”, antiga moradora que emprestara seu nome ao primitivo topônimo do bairro.
Melins em suas memórias e “passeio” alude também ao “bonde dos namorados”, ao tempo em que nos informa como se fazia o retorno do bonde no fim da linha. Ouçamo-lo: “É hora de o ‘Bonde dos Namorados’ voltar. O condutor e o motorneiro viram os bancos e o arco que leva energia para o velho motor ‘Siemens’. O nosso bondinho rodará em direção ao centro da cidade”.

Aqui, neste ponto final, peço licença a Murilo Melins para encerrar esse texto com suas próprias palavras: “Vamos fazer o retorno, (...), pois o Bonde do Passado já passou, deixando apenas boas reminiscências”.[13]

Os bondes de Aracaju, como vimos, vincaram a literatura sergipana. Ele foi representado não apenas como um meio de transporte, mas também como um patrimônio sentimental da cidade. Nada se preservou dos românticos bondinhos. O tempo do bonde passou; ficaram, todavia, os registros literários.

[1] Professor dos Cursos de Turismo do IFS. E-mail: acneto@infonet.com.br
[2] FIGUEIREDO, Jacintho de. Motivos de Aracaju. 3. ed. Aracaju: Funcaju, 2000. p. 31.
[3] FIGUEIREDO, Jacintho de. Motivos de Aracaju. 3. ed. Aracaju: Funcaju, 2000. p. 77.
[4] LÉO. Piparotes. Sergipe-Jornal. Aracaju, nº 1.400, 18 de agosto de 1926. p. 01.
[5] Ver críticas ao governo Graccho Cardoso e ao serviço de bondes no Sergipe-Jornal de fev. de 1925 a out. de 1926.
[6] VIANNA, Rodrigues. No bond. O Espião. Aracaju, nº 37, 21 de março de 1909. p. 01.
[7] FORTES, Bonifácio. Os Bondinhos. Sergipe-Jornal. Aracaju, nº 12.477, 24 de maio de 1950. p. 04.
[8] CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju. 3. ed. Aracaju: Banese, 2001. p. 113-114.
[9] CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju. 3. ed. Aracaju: Banese, 2001. p. 176.
[10] Amado, Genolino. Um menino sergipano. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 104-105.
[11] Disponível em: <http://www.tramz.com>. Acesso em: 14 de set. 2015.
[12] MELINS, Murilo. Aracaju romântica que vi e vivi. 3. ed. Aracaju: Unit, 2007. p. 195-201.
[13] MELINS, Murilo. Aracaju romântica que vi e vivi. 3. ed. Aracaju: Unit, 2007. p. 317-322.

Texto reproduzido do site: primeiramao.blog.br

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