quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Um cantinho, um violão. Sergipe e João

Foto reproduzida do site [onordeste.com] e postada
pelo blog “Isto é SERGIPE”, para ilustrar o presente artigo.

Texto publicado originalmente no site do Jornal da Cidade, em 27/11/2017

Um cantinho, um violão. Sergipe e João
Por Luiz Eduardo Oliva *

Essa semana o mundo da música ficou sabendo, sobretudo para os aficionados da Bossa Nova esse momento maior da música brasileira com projeção em todo o mundo, da interdição de um dos maiores, se não o maior artista vivo brasileiro, João Gilberto, por sua filha Bebel Gilberto. Há muito João vive recluso em seu apartamento no Leblon, isolado, não fala praticamente com ninguém e tem uma vida monástica e com horários tipicamente dele. João é inegavelmente um cara esquisito, desses gênios que transformam o mundo, mas cria o seu próprio mundo.

Rui Castro, articulista da Folha de São Paulo e um dos maiores pesquisadores da nossa música, sobretudo a bossa nova – inclusive é biógrafo de João Gilberto -  em artigo na própria Folha usando um trocadilho com aquilo que em João é a própria perfeição – sua afinadíssima voz e ritmo – sob o título “A vida desafina” faça um pouco do drama do gênio que já não pode mais dispor de moto próprio das suas próprias atitudes e recebeu o socorro da filha Bebel, interditando-o.

Aqui em Sergipe, a segunda terra desse baiano de Juazeiro, parece que ninguém diz nada sequer comenta como se João Gilberto fosse uma coisa distante da gente.

Mas é em Sergipe certamente que uma parte fundamental da formação do artista vai se dar, contado por ele próprio, É que o baiano do Juazeiro, quando menino, veio ser estudante interno do colégio Jackson de Figueiredo. E, naturalmente, a musicalidade que havia em Sergipe, no início dos anos 50, tocou fundo naquele que iria criar o mais expressivo movimento musical brasileiro com repercussões internacionais: a bossa nova.

Não se trata de bravata bairrista de sergipano, não. É a mais pura verdade, dita pelo próprio artista, transformador da nossa música, um monstro sagrado, reverenciado em todo o Brasil e alhures. Isso ocorreu no último show que João fez em Sergipe no EMES (fez dois, um no auge da Bossa Nova nos anos 60 no Teatro do Atueneu), onde fez revelações que demonstram sua formação musical inicial a partir artistas genuinamente sergipanos onde alguns naquele show compareceram (hoje todos já são falecidos)

João fez questão de levar todos os velhos amigos, do tempo em que, menino, estudante interno do Jackson de Figueiredo, morou em Aracaju. Recordou com intimidade dos velhos mestres Judite e Benedito. Falou dos municípios sergipanos com a naturalidade de conterrâneo, ao se referir aos amigos e suas origens. Lembrou o doce que vinha de Capela, o amigo de São Cristóvão, e mostrou intimidade com as ruas de Aracaju.

Acredite ou não leitor, mas João pediu desculpas pelos problemas de microfonia do som. E justificou: “-não se preocupem, este som não é sergipano, veio da Bahia, vocês não tem culpa”.  Ao dedilhar “Aos pés da Cruz” de  Marino Pinto e Zé da Zilda, interrompeu o violão. E disse que era assim que Dona Judite fazia, quando desligava o rádio interrompendo a música para as aulas de boas maneiras. No que o nosso João confirmou: “-até hoje, posso estar em Tókio ou em Nova York, e se me faço acompanhar de uma mulher, fico ao lado da rua, na calçada para protegê-la, como convém a um cavalheiro. Lições da Professora Judite que nunca me esqueci”.

Mas se estes detalhes são meras recordações da pré-adolescência, em dado momento ele pede a Carnera e Bisextinno (naquela ocasião presentes na platéia) que se levantem. E diz: “-eis aí meus mestres, com Carnera aprendi os mistérios do violão e com Bisextino o rítimo, o suwing”. Revelou então que fugia do colégio  Jackson para,  passando pela Laranjeiras,  subir a São Cristóvão. Lá havia um pagode, onde ele deliciava-se com os azes da música sergipana do início dos anos 50.  E discorreu nomes daquela época: “-foi ali, que tomei gosto pela música, que despertei para aquilo que viria a ser o meu próprio futuro”.  João, leia-se,  o Gilberto,  do banquinho e um violão, nuca escondeu seu amor por Sergipe. Ele, a referência maior  da bossa nova, fez questão de reverenciar nossos músicos. Mas nós, sergipanos, não damos nenhuma importância a isso. Não há sequer um olhar para o passado. Há ainda uma ausência de um sentimento de sergipanidade que possa perceber o valor da cultura sergipana. Se não temos grandes nomes que desfilem no que há de melhor da música inteligente brasileira algo da sergipanidade aconteceu por descendentes seus ou por pessoas que aqui aprenderam o ofício da música, como foi João Gilberto. Diogo Nogueira é neto de sergipano (revelado pelo falecido pai, João Nogueira). Dolores Durant era filha de uma itabaianense e pouca gente sabe disso. Para se ter uma ideia de quem ela foi, Frank Sinatra gravou uma música dela com Tom Jobim.

Para mais uma vez se referir a Rui Castro, se a vida desafina para João, lembrar sua relação com Sergipe é afinar o violão da nossa própria identidade. Uma sergipanidade que de fato existe. Precisa, entretanto ser acentuada.

* advogado, poeta e professor

Texto reproduzido do site: jornaldacidade.net

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