Publicado originalmente no site da Revista Brasileiros, em
16/12/2009.
O homem-livro
Evando, pedreiro sergipano, só foi alfabetizado aos 18 anos.
Pegou gosto. Não parou mais de ler. Montou uma biblioteca pública por conta
própria. E ajudou a fundar outras 36
Por Lina de Albuquerque
A bem da verdade, a pergunta não chegou a surpreender o
primeiro e improvisado professor de literatura do pedreiro Evando dos Santos.
Afinal, o aluno do esclarecido mestre de obras Dernival Pereira, sergipano como
ele, tinha sido alfabetizado havia pouco tempo, aos 18 anos, na Escola Batista
da Vista Alegre, zona norte do Rio de Janeiro. Devia ter uns 21 na época em que
foi apresentado pelo colega sexagenário a uma outra, digamos, marca de
clássicos. A conversa se deu em um raro momento de folga de uma reforma em um
prédio da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro.
“Não é só isso, meu filho”, contornou Dernival, piso-teando
num toco de cigarro ainda em brasa. Em seguida, completou como se fosse um
mestre de obras literárias: “Um clássico é um livro bem escrito, original,
universal e que fica para sempre”.
Evando prestou atenção, entendeu mais ou menos, e voltou a
trabalhar. Mas levou, emprestados, de Dernival alguns livros de autores
clássicos. Entre eles, Machado de Assis, Lima Barreto e Pablo Neruda. Tempos
mais tarde, lendo oito palavras de um livro do escritor Tobias Barreto de
Meneses, também tomado emprestado de Dernival, ele se sentiu realmente tocado.
“A vida é uma leitura. Ler é lutar”, escreveu Barreto, que também era filósofo,
poeta e jurista − e ainda por cima sergipano! Daquela vez, Evando entendeu
tudo.
Foi o mote que levaria Evando, anos mais tarde, a fundar sua
primeira biblioteca. Não ficou nisso. O ex-pedreiro sergipano ajudou a criar
outras 36 pelo país, incentivando e enviando livros. Foram 20 mil volumes para
três Estados nordestinos. Até Angola, do outro lado do oceano, se viu
contemplada. Essa história sensibilizou Oscar Niemeyer, que desenhou, de graça,
o projeto da Associação Centro Cultural e Biblioteca Comunitária Tobias Barreto
de Meneses, que Evando comanda hoje, aos 49 anos, na Vila da Penha, Rio de
Janeiro.
Evidentemente, o nome da biblioteca tinha de ser uma
homenagem ao escritor que abriu os horizontes do ex-pedreiro. Uma das teorias
de Tobias Barreto − por sinal, o maior bibliófilo do Império − sustenta que a
educação se baseia em imagens vistas em estampas impressas e em desenhos. Ora,
isso confirmava aquilo que Evando sabia desde a infância em Aquidabã, pequena
cidade do sertão sergipano. Por ter trocado as horas de estudos pelo trabalho
na roça, não aprendeu a ler quando garoto, mas adorava imaginar o enredo por
trás das imagens nas páginas dos livros de cordel. Evando foi um menino que não
conheceu o pai e trabalhava com o avô, cortando junco para confeccionar
travesseiros e colchões em que outros dormiam. Sua família era formada pela
mãe, Zelita, e o avô, José Mestre. Dormiam todos numa esteira dura de taboa.
Mal importava. Evando nunca foi de ficar deitado, nem mesmo nas horas de folga.
Para ele não existia diversão melhor que desembestar em direção à feira da
cidade para ouvir as histórias de cordel narradas por vendedores ambulantes de
remédios e livros. Eram os chamados “propagandistas”.
“Eu escutava as histórias, gravava todas na memória, e
depois pedia aos propagandistas para olhar as figuras de novo. Era como se já
pudesse desvendar o significado do amontoado de letras”, lembra Evando.
Embora a sua cartilha tenha sido os Salmos, os primeiros
livros que procurou para ler, ou “reler” de certa forma, foram mesmo os de
cordel que marcaram sua infância. Evando nunca se esqueceu das fantásticas
passagens contidas em títulos como O Gigante do Terror, Lampião no Inferno, O Boi
Leitão. O fascínio era tamanho que chegou a ter em casa trezentas obras de
cordel.
Desde que começou a ler, a vida de Evando passou a ser
rodeada não apenas de clássicos e cordéis, mas de todo o tipo de livro. Na sua
pequena casa na Vila da Penha, bairro carioca onde nasceu o jogador Romário, há
livros por todos os cantos. Os móveis parecem servir apenas de suporte para as
pilhas de volumes. Elas vão se acumulando pela sala, corredor, cozinha. Até o
colchão, espremido no quarto que divide com a mulher, a professora Maria José,
tornou-se um objeto, à primeira vista, fora de lugar.
Os livros não param de chegar desde o dia em que, 11 anos
atrás, Evando saiu para consertar um vazamento e voltou para casa carregando
cerca de 50 títulos que estavam sendo jogados fora pelo sujeito que o
contratou. O sergipano tomou gosto. Passou a pedir outros livros para ler e
depois distribuí-los a quem quisesse ou encontrasse pela rua.
Foi assim que a casa onde morava com a mulher e a mãe, que
faleceu em julho, tornou-se uma biblioteca comunitária, com horários e regras
bem diferentes. Ela jamais fechava – nem aos domingos. Muitos livros
emprestados, nem precisavam ser devolvidos. “Se o leitor se encanta com uma
obra a ponto de querer tanto, que fique com ela. A leitura cumpriu assim o seu
papel”, filosofa.
Evando e suas ideias pouco convencionais já inspiraram dois
curta-metragens (O Homem-livro, de Ana Azevedo, e O Pedreiro Literário, de Luiz
Cláudio Lima) e até um romance do escritor e filósofo italiano Remo Rapino (Un
Cortile di Parole, Carabba Editore, 2006). Sua trajetória também está presente
entre os 26 depoimentos de viradas, reviravoltas e superações presentes no
livro Recomeços (Editora Saraiva, 2009). Indicado pela escritora Nélida Piñon,
Evando recebeu uma medalha da Academia Brasileira de Letras em reconhecimento à
sua luta. Ele ainda ganhou, ao lado de outras dez personalidades − entre elas,
o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Dom Eugênio Sales e o seu próprio
“benfeitor” Oscar Niemeyer −, o prêmio “Personalidade Cidadania 2009″, criado
pela Unesco, Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Folha Dirigida, em
homenagem às conquistas sociais dos laureados.
Os livros de Evando, sua grande obsessão, estão sendo
transferidos, dia a dia, para a Biblioteca Tobias Barreto de Meneses, para
auxiliar na formação daqueles que, como ele no passado, tiveram pouco acesso à
leitura. Já estão catalogados 1.500 dos 4.500 títulos disponíveis. A construção
da biblioteca é um capítulo fundamental nessa odisseia tão grandiosa quanto
inusitada, vivida por um pedreiro bibliófilo.
“Meu amigo está fazendo história”, diz o radialista João de
Xerém, que o conheceu quando trabalhava em uma rádio comunitária, já fechada.
“Nunca se ouviu dizer de um pedreiro capaz de construir um patrimônio cultural
dessa relevância”, acrescenta o radialista, colaborador do programa de Adelson
Alves, locutor da Rádio Ministério da Educação e Cultura.
A biblioteca está sendo organizada com o mesmo entusiasmo
com que Evando, anos atrás, ligou para um programa de tevê para fazer um pedido
ao vivo ao entrevistado da tarde. Sim, o arquiteto Oscar Niemeyer. Depois de
ter pincelado a sua história à produção do MultiRio, da TV Bandeirantes, Evando
perguntou a seco à Niemeyer:
- O senhor faria de graça um projeto para a minha biblioteca
na Vila da Penha?
Impressionado, tanto pelo atrevimento como pelo que acabava
de saber a respeito daquele operário das letras, o arquiteto respondeu:
- Eu faço isso por você. Na verdade, sempre tive um sonho de
ver centenas de bibliotecas desse tipo espalhadas pelo Brasil.
Passaram-se quatro anos entre aquele primeiro contato e a
realização da obra, inaugurada em dezembro de 2008. Embora assentada por um
belo projeto, ela não deixa de refletir a distância entre idealismo e prática.
Faltam verbas para tudo sair como o sonhado. A associação é mantida com doações(*)
e parte da aposentadoria da mãe de Evando. Na fachada espelhada, há um
comunicado escrito à mão, avisando que os banheiros estão quebrados. A chave
sempre fica com Evando. Quando ele não está dando expediente, basta ligar para
a sua casa e ele logo aparece, sempre disposto a atender quem quer que seja,
como já fazia em sua casa – hoje, um informal prolongamento administrativo da
biblioteca.
“Num país com um índice de leitura tão baixo, é
impressionante ainda existir heróis assim”, ressalta a professora Sônia Izoton,
dona de um tradicional colégio na Vila da Penha, o Jardim Escola Pequeno
Torcedor. Ela costuma participar, com outros professores e alunos, dos
“arrastões literários” que Evando promove de tempos em tempos, distribuindo
livros pela cidade. Nessas ocasiões, o ex-pedreiro aparece paramentado de
“homem-livro”. O traje, de cartolina, tem frases de grandes escritores. Evando
talvez exagere em seu apreço pelos livros, quando afirma que são os filhos que
não teve. Mas não seria nenhum exagero concluir que essa é daquelas histórias
que superam, de longe, qualquer ficção. E mais: tal como os clássicos, não pode
ser esquecida.
(*) Associação Centro Cultural e Biblioteca
Comunitária Tobias Barrrretto
Banco Itaú – Agência 0782 – CC 78892-1
Texto e imagem reproduzidos do site: brasileiros.com.br
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