sábado, 21 de novembro de 2015

Joana Côrtes: "Eu queria saber dessa história e compartilhar"


Publicado originalmente no site JornaldaCidade.Net, em 17/11/2015.

JOANA CÔRTES.

‘Eu queria saber dessa história e compartilhar’

Por: JornaldaCidade.Net

A inquietude se juntou à curiosidade , cujo resultado foi a multiplicação de memórias – por vezes a ausência delas - e que agora se divide, se espalha para findar numa nova soma, esta imensurável. Joana Côrtes é autora dessa operação que foi compartilhada em Aracaju no último dia 12, com muita ‘alegria fértil’ e com o incômodo de uma pedrinha no olho. A ideia é de compartilhamento, de mobilização, ainda que para isso seja preciso futucar a ferida, se distanciar para se rever e tomar a consciência de que é tão protagonista do que escreveu quanto cada um dos seus entrevistados. Leia a entrevista que segue e saiba um pouco mais sobre um período que deixou marcas da porta para fora e da para dentro da casa de Joana. Boa leitura. (Gilmara Costa – Da equipe JC).

1) Jornal da Cidade - O que te levou a escrever esse livro, a jogar luz sobre esse período que atingiu o país e você, pessoalmente, uma vez que seus pais foram presos políticos?

Joana Côrtes - O que me levou a escrever o Dossiê Itamaracá, levou a fazer a exposição Anistiados, em 2009, o que me levou a mexer nesse tema quando era repórter do Jornal da Cidade, a futucar isso no final do meu curso sobre a Gazeta de Sergipe, foi o incômodo de não saber. Tanto para fora de casa, por exemplo, na sala de aula a gente via a ditadura muito rapidinho, nos dez minutos do segundo tempo, lá no final do segundo semestre, bem sapecado. E dentro de casa porque meus pais foram presos políticos na década de 70 e isso eu sempre soube. Eu e meus outros dois irmãos. A gente sabia e até com certo orgulho pela militância, pela luta, pelo peso que isso teve, por lutar por seus ideais, por liberdade e resistência. Minha mãe sempre falava : ‘Ah, no tempo em que seu pai morava na ilha…’, que foi o período que ele passou na Ilha de Itamaracá, na penitenciário Barreto Campelo. O que a gente não sabia , o que eles esqueceram por trauma e por direito de compartilhar era como foi esse cotidiano, por que eles entraram nessa clandestinidade, por que descambaram para São Paulo através da Ação Popular, que era um entidade política clandestina de esquerda, por que que foram trabalhar em chão de fábrica, por que foram trabalhar na zona canavieira em Pernambuco, como tinha sido a prisão deles, se foram torturados, de que maneira, porque eu já sabia que eles tinham sido torturados, mas de que maneira foram torturados? Como era o cotidiano da prisão, o que comiam, enfim, saber como qualquer outro filho quer saber do pai e da mãe e como qualquer outro pai e mãe não contam tudo da sua vida, como a gente não conta. Então, o Dossiê Itamaracá nasceu desses incômodos, tanto público, entender porque uma escola até hoje tem o nome de um ditador, entender porque lugares públicos têm nome de ditadores, por que isso acontece, e de entender esse processo dentro de casa, então foi incômodo desse silêncio, de ser curiosa e de querer saber.

2) JC - E ai veio Anistiados inicialmente?

JC – Isso. Fiz a exposição Anistiados com as telas que painho (sic) produziu dentro da prisão, que sempre existiram aqui em casa e propus que dez pessoas escreviam criassem micro contos em cima disso. E quando fui fazer a exposição em 2009, eu entrei em contato com a documentação que existia aqui, sabia que existiam cartas que meu pai e minha mãe trocavam, assim como outros presos políticos também tinham esse movimento de se comunicar com o lado de fora das grades, existia um álbum de fotografia e eu não entendia como era que isso se dava, como funcionava. Como é que tem fotos na prisão?Sempre era os presos políticos todos juntos, nas visitas com familiares , no futebol, no momento de banho de sol, na construção do galpão de artesanato, na leitura do jornal, cozinhando, lavando os pratos no cagador do banheiro. E eu nunca entendia. E quando desarrumei para a exposição , eu vi que tinha um material aqui. E parte desses trechos de cartas, a gente fez instalações, eu e o Rafael Borges, que é um artista parceiro meu, e eu vi que tocou muito as pessoas. Elas queriam saber mais. O meu irmão mais velho, que conviveu os primeiros quatro anos com meu pai na prisão, visitando ele - minha mãe descobriu que estava grávida numa sessão de tortura-, não tinha lido aquelas cartas. Então meu pai falou que no dia da exposição, ele se sentiu nu porque são cartas que eles não mexiam mais. Meu irmão nunca tinha visto. Tem esse processo de poder revelar um pouquinho dessa história para o irmão, que viveu isso e que, de uma certa maneira,silenciou.

3) JC - A exposição já era um prenúncio desse livro?

JC – É. Tanto que a foto da exposição é essa foto da capa de Dossiê, que é a foto em que eles estão todos juntos em 1975, num campo de futebol, como um coletivo, como um time. Acho que a exposição Anistiados foi o início do processo mesmo, porque é um processo. Eu só me dei conta de que fui atingida pela ditadura depois que terminei o livro, já tinha ganho o prêmio do Memórias Reveladas, que saiu em 2012, mas em 2014, quando a ditadura fez 50 anos que foi instalada aqui no Brasil, o Diário de Pernambuco fez uma mega séria online chamada ‘Filhos da Ditadura’, as jornalistas entrevistaram 10 atingidos pela ditadura, então tinha filho do Paulo Freire, filha do Davi Capistrano, filhos de referências, e elas me consultaram, pois sabiam que tinha escrito um livro, que foi premiado, e queriam me entrevistar. E eu disse que não tinha sido atingida, quem foi atingido foi o meu irmão, ele que viveu isso, mas elas perguntaram ‘Você nasceu em que ano?’, eu respondi: ‘Em 1980’. Então era ditadura ainda. Elas me provocaram isso. Então o Dossiê , a exposição, as reportagens que eu fiz, somente agora percebi isso, foi a maneira que encontrei para me refazer dentro desse processo, para entender, foi o caminho que encontrei para elaborar toda essa história que é familiar, que é afetiva, que é de Aracaju, de Sergipe, do Recife, do Nordeste, que é pública também, está da porta para fora, não é uma coisa só nossa. Não somente porque queria saber dos meus pais. Eu queria saber dessa história e compartilhar e o Dossiê veio para isso. E está maravilhoso, veio para trazer contato com os outros, com as mulheres, com os álbuns de fotografia, os acervos que eles também tinham, o modo como cada um guardou isso. Teve gente que não guardou isso. Tem gente que está com foto jogada numa caixa de sapato, enquanto outro tem tudo digitalizado. Então, a maneira como cada um lida com essa memória, e como que isso refelete isso hoje. Por exemplo, a ditadura tem seus reflexos na minha família até hoje, é nítido, é claro, mas só com a minha maturidade , depois de 30, com todo esse processo de elaboração, foi ficado mais claro.

4) Como foi o processo de busca de material para construir o Dossiê?

JC - Eu tive que ir a ao Recife para entrevistar cinco ex presos políticos dos seis que moram lá e o meu pai. Entrei em contato com as cartas e os documentos que o DOPS produziam. Eu fui no Arquivo Público de Recife e descobri o que tinha sobre o coletivo da Penitenciária Barreto Campelo e aí encontrei 97 relatórios que o DOPS produzia todos os sábados de visita. Todas as pessoas que iam visitar os presos políticos na ilha de Itamaracá, na penitenciária Barreto Campelo, todo sábado, de 1977 a 1978, eles produziram relatórios dizendo quem eram essas pessoas, assim como tudo que levavam como material de artesanato, revistas, remédios, tudo. Então deu para ler, por exemplo, que doenças eles tinham na prisão. Tinha muito remédio para verme, muito cigarro para poder colocar a energia para for a, o relatório não registra, mas muito material clandestino, de denúncia daquela situação lá, que são situações que existem ainda hoje, pois o sistema prisional brasileiro é precário ainda hoje.

5) JC - A cada encontro com esse passado documento foi doloroso?

JC – Foi bastante. As cartas são íntimas. Então, desde o registro do amor dos meus pais , dessa ligação muito forte até o baque do dia a dia , tem percevejo no colchão, tem greve de fome, tem os sinais de tortura, tem o medo de não sair vivo das sessões de tortura e tem o peso da ausência. Mainha falava que ela ficou viúva de marido vivo durante cinco anos. É a experiencia dela, mas também de outras mulheres também e de outras mulheres até hoje. Então, ler as cartas para mim, essencialmente, foi muito difícil. Foi muito porque era carta, que são um diário, foram mais de 40 cartas que contam todo o nascimento do meu irmão, como era o processo de visita da família, como era a articulação para ele se reorganizar para se sentir útil lá dentro, tudo, sobre a questão do tempo, como era lá dentro, de que maneira se criava as válvulas de escape e resistência , como seu corpo definhava na prisão. É um processo dolorido, tanto dele, como de ouvir os outros. Eu não queria saber das torturas, eu queria considerar os entrevistados a partir do momento que eles entraram na prisão, mas esse corpo e essa pessoa tem uma história antes e ele está ali por isso. Eles perguntavam ‘Você não vai falar?’, e eu dizia que se eles quisessem, pois falar da tortura era falar dos meus pais. Eu ainda não sentei com minha mãe para perguntar como foi o processo de prisão dela. A entrevista com meu pai foi muito difícil porque ele se fechou também, se armou…

6) JC - E como foi a aceitação deles em ver a filha cavando essa história?

JC – Com diz meu pai: ‘Joana é boa de meter o dedo na ferida e depois fica aí’. Acho que têm muito orgulho, mas é dolorido porque são processos internos. Ás vezes eu acho que não tenho tanto direito de mexer , mas se veio com essa força, se guardaram as cartas, se tem registros de fotos para isso, se querem falar, eu acho que esse é o momento. A conversa com o meu pai não fluiu muito, ele travou, então estabelecemos a comunicação por cartas, por email, no caso. Quando eu vi que não ia funcionar como com os demais entrevistados, a gente trocou email, mas teve uma hora que meu falou ‘assunto encerrado’, porque dói. E nesse meio tempo, existe um projeto chamado Marcas da Memória, do Ministério da Justiça , que fez um documentário só com as mulheres ex-presas politicas de Recife (PE) e depois teve a mesa vermelha, que foi somente com os ex presos políticos e eu estava terminando o dossiê , a dissertação, e meu pai tinha confirmado presença, ia reencontrar todos eles e no último momento ele disse que não ia. Foi então que escrevi uma carta para ele dizendo para ele ir sim, apesar de que ele tinha todo o direito de não querer, pois a dor era dele, a história era dele, mas eu acho que os filhos e os netos têm o direito de saber. As pessoas têm o direito de saber, ele tinha o direito de não falar se não quiser. Imagine que você dividiu a vida com outras pessoas durante quatro, cinco anos, teve homens que ficaram presos dez anos, em idades cruciais da maturidade, dos 26 aos 36 anos, por exemplo, e você reencontrar essas pessoas, se rever, se abrir, dizer como foi esse processo de violação, de violência, como aconteceu para que as próximas gerações entendam que isso não se repita. E ele acabou indo e a carta que eu escrevi para ele abre o filme, ele lendo. É um processo dolorido.

7) JC - Quando você vê pessoas indo para ruas pedindo a volta diatadura, o que sente?

JC – Eu acho que existe todo um processo. Memória é campo de conflito. Existem as pessoas que conhecem e as que desconhecem. Tem gente que pensa fechado, outras aberto. Enfim, mas acho que o processo que o Brasil passa hoje de não ter feito a sua justiça de transição, que é fazer seu processo de memória, de justiça, de verdade, nos últimos 30 anos , influencia muito nisso. O não saber acho que isso influencia muito. Quando a pessoa pede a volta da ditadura, eu digo senta aqui que vou te contar uma história, eu duvido que ela passe incólume, impassível a tudo que contar a ela. Jogo político, memoria é jogo de conflito. O que não dá é relativizar direitos humanos. O que não dá é achar que ‘bandido bom, é bandido morto’, o que não dá é naturalizar essa fala; ir na padaria e ouvir alguém dizendo que fizeram o serviço mal feito e a presidente deveria ter sido morta na ditadura mesmo. O que não dá é para relativizar e achar normal. Não dá, deixar que o Estado, que se diz laico, tome conta do corpo da mulher. Tudo isso está ligado e acho que a solução, eu não sei o que fazer, eu sei o que não fazer, e que é não relativizar os direitos humanos. Enfim, tem que ir para conversa, para o debate. Acho que tem que ter bom senso, as pessoas são livres para pedir o que quiser, mas existe um terreno atrás que precisa ser cavado, desvendado.

Texto e imagem reproduzidos do site: jornaldacidade.net

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