quinta-feira, 30 de setembro de 2021

"Valteno Menezes: um pequeno grande homem", por Lilian Rocha

Publicado originalmente no Perfil do Facebook|Lilian Rocha, em 28 de setembro de 2021

Valteno Menezes: um pequeno grande homem
Por Lilian Rocha

Depois de ter sido professora por mais de 30 anos, eu achava que não poderia haver outra profissão tão surpreendente e estimulante. Porque “dar aula”, pelo menos pra mim, era sempre algo imprevisível, uma vez que a sala de aula é um “organismo vivo”, onde tudo pode acontecer de repente. E quando acontece, o professor tem que estar pronto para tudo, inclusive até para mudar de papel com seus alunos, se for preciso.

Por milhares de vezes eu troquei de papel com eles e aprendi, muito mais que ensinei.

Mas depois de aposentada, me dediquei a outra atividade, bem mais “calma” que a outra, evidentemente, mas igualmente surpreendente...

Hoje me dedico à revisão de textos e a escrever livros, uma atividade com que sempre sonhei. Só que do mesmo jeito que nunca consegui ser apenas uma professora que transmitia conteúdos mas me envolvia inteiramente na vida dos meus alunos, também me vejo completamente envolvida na história das pessoas que me pedem ajuda para revisar, organizar ou escrever um livro. A maioria das vezes nem conheço essas pessoas, pois os pedidos me chegam pela internet, mas a partir do primeiro capítulo, já me vejo mergulhada na história e “amiga íntima” daqueles personagens. Imagino os cenários, sinto o drama dos personagens e, por vezes até, misturo a minha emoção com a deles...

Assim também foi quando Beto, irmão de minha cunhada Leila, me convidou para escrever um livro sobre o pai dele, Valteno Menezes. Eu nunca tinha escrito uma biografia antes, mas como sempre acontece, meu entusiasmo fala primeiro e, quando percebo, já aceitei o desafio, sem nem ao menos pensar direito.

O objetivo de Beto e dos irmãos era homenagear o seu pai com um livro sobre ele, a ser lançado em 2019, por ocasião do centenário dele, se vivo estivesse.

Só havia um pequeno problema: seu pai tinha falecido há quase 30 anos e muitos dos amigos e contemporâneos dele também já se tinham ido. E apesar de ele ter sido um comerciante muito conhecido, dono da maior loja de tecidos em Aracaju, um dos donos da Viação São Pedro e um dos sócios do Hotel Beira Mar, não havia absolutamente nada na internet sobre ele, nenhum registro, nenhuma foto.

Mas nosso entusiasmo falou mais alto. Decidimos prosseguir, mesmo assim. E durante um ano, eu e Beto saímos à procura de amigos, ex-funcionários e parentes de Valteno Menezes para entrevistá-los, a fim de conseguir mais uma pecinha para montar aquele enorme quebra-cabeça sobre a vida dele.

E a cada entrevista, minha alma literária ia desenhando a figura daquele personagem que eu só tinha visto duas vezes em minha vida.

Mas não foi fácil montar aquele quebra-cabeça com tantas peças faltando... Por vários dias eu fiquei debruçada no computador, tentando encontrar um link que fizesse dois pedaços da história se encaixarem. Eu conseguia vislumbrar por inteiro a alma do meu personagem, mas uma história não se faz só de emoção, ela também precisa de dados concretos.

E de pouquinho em pouquinho, extraindo da memória de um e de outro, fui conseguindo trazer à tona aquele pequeno homem, pobre, manco e semianalfabeto, que veio lá de Riachuelo disposto a abrir uma loja de tecidos em Aracaju.

E ele conseguiu. Não só abriu uma loja de tecidos, como conseguiu se tornar um dos maiores empresários sergipanos, graças à sua visão empreendedora.

Mas não foi só isso o que me encantou em sua história. Muito mais do que saber “o que” ele conseguiu, foi saber “como” ele conseguiu. E muito mais surpreendente do que conhecer sua visão aguçada para os negócios, foi sentir o quão generoso era o seu coração.

Mas para descobrir isso, é preciso ler esta história com o coração, pois foi com o coração que ela me foi contada e com o coração que ela foi escrita.

E para que esse pequeno grande homem continue vivo em nossa memória é preciso continuar falando dele, rindo dos seus ‘causos’ e nos orgulhando dos seus feitos. Pois “uma pessoa só morre no dia em que morre a última pessoa que se lembra dela”…

Texto e imagem reproduzidos do Facebook|Lilian Rocha

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

"Jabá com abóbora", por Clóvis Barbosa

Publicado originalmente no site DESTAQUE NOTÍCIAS, em 14 de setembro de 2021

Jabá com abóbora
Por Clóvis Barbosa *

Sem medo de cometer quaisquer deslizes de ordem histórica, entre os anos de 1976 e 2015 ninguém poderá falar da política sergipana sem citar o nome de Rosalvo Alexandre de Lima Filho. Foi justamente na semana que antecedia o carnaval de 1976 que desencadeou em Sergipe a famigerada “Operação Cajueiro”. Vivíamos sob a égide de uma ditadura militar, então presidida pelo general Ernesto Beckmann Geisel. Eram dias de chumbo a que estavam submetidos os militantes políticos, estudantes, trabalhadores, homens, mulheres e crianças. Em todo Brasil, nesse período, foi iniciado um processo de desarticulação do Partido Comunista Brasileiro, então na clandestinidade. No Estado, em várias prisões houve a predominância da perversidade e brutalidade praticada por agentes do regime autoritário contra essas pessoas. Dentre inúmeros presos políticos ali estava Rosalvo Alexandre, cuja detenção ocorreu no interior de Minas Gerais, onde ele se encontrava fazendo um curso de mestrado na área de agronomia. Depois da prisão e julgamento, Rosalvo se integrou completamente à política sergipana, alinhando sua participação nos chamados partidos de esquerda. Foi vereador na capital e se ligou umbilicalmente ao líder político Jackson Barreto. Conhecido como grande formulador político, Rosalvo desenvolveu, também, uma enorme capacidade na arte de mobilizar pessoas para os grandes acontecimentos da política. Era brilhante em descobrir e estimular lideranças de bairros, trazendo muito deles, claro, para o seu agrupamento. Numa nova roupagem, pode-se dizer que ele foi o criador dos chamados “Ratos de Rádio”, por quem nutria uma especial atenção.

Esses profissionais eram treinados para emitirem opiniões nos diversos programas jornalísticos da cidade. Era evidente que essas manifestações tinham o objetivo de defender o governo – municipal ou estadual – e políticos variados. Os Ratos de Rádio sem-pre estavam a postos para se posicionar contra determinada crítica ou ação investida contra o seu patrono, para quem, também, veiculava propaganda política e difundia opinião favorável, mas contrária aos seus adversários. Em alguns programas de rádio havia a conivência de radialistas ou de seus produtores. Os erros e acertos dessas participações eram diariamente avaliadas e, nesse mercado, surgiram excelentes radialistas e homens da imprensa. Mas Rosalvo Alexandre era um agitador das massas? Para o jornalista Carlos Cauê, competente marqueteiro político e intelectual de Sergipe, em artigo publicado na revista Cumbuca, de março/2015 – Ele é mais do que isso. (…) é um agitador de mentes, as mais diversas. Sejam as de jovens conflagrados com dúvidas e ansiedades adolescentes, que encontram nele a agitação dos mares modernos, capaz de abrigar toda subversão comportamental, e redimi-las; sejam as de mulheres que se deixaram arrastar pela sedução de um homem que conjuga com tamanha equidade os eixos de uma vida libertina e sóbria, mas completamente apaixonante às suas existências; sejam as de políticos sequiosos por entender as leis que regem a trama do tecido político e sonham apoderarem-se desse tecido para vestirem a si ou aos outros; ou mesmo a de amigos que empreenderam parte de suas vidas na companhia desse passageiro e aprenderam com ele a serem humanos. Mais humanos, talvez.

Cauê, acima, consegue sintetizar, poeticamente, o perfil dessa figura que fascinava a todos que dele se aproximavam. Era um homem que gostava de aglutinar em torno de si os reprimidos da sociedade hipócrita e os oprimidos pela política que exclui. Não cultivava ódio por quem quer que seja. Nos anos 1980, o seu jeito irrequieto o fez criar em sua casa o famoso jabá com abóbora, uma espécie de jantar oferecido aos jornalistas e políticos da terra. De início, era chamado de o “jabá dos jornalistas”, uma alusão aos profissionais que recebiam dinheiro para veicular notícia positiva ou negativa a favor ou contra alguém. Depois, com a popularidade do encontro, políticos das várias matizes ideológicas passaram a participar, transformando-se, o evento, num dos grandes acontecimentos da política de Aracaju. O “jabá com abóbora” acabou em razão de um incidente ocorrido entre dois jornalistas, que culminou em lesões corporais graves para um deles. Era a prova inconteste do trânsito livre que Rosalvo tinha com os setores da imprensa e da política sergipana. Ele gostava de afirmar com sua voz estrepitante que o seu “jabá” era uma típica “bagunça organizada” e que “é no jabá onde se decide tudo e define candidatos”. Outra iguaria apreciada por Rosalvo, tida por ele como um poderoso afrodisíaco, era o popular “sururu com capote”, servido em tijelinhas individuais com caldo. Certa vez, numa reunião de políticos numa casa de praia no Mosqueiro, o sururu foi servido e muita gente – no dia seguinte – reclamou de caganeira, levando o então presidente da Petrobrás, José Eduardo Dutra, a afirmar: – Parece que o poder afrodisíaco do sururu mudou de lado. Ao invés do apetite sexual, trouxe uma violenta brochura, através de cólica, suor frio e vômitos.

Eu, particularmente, me divertia com o seu senso de humor e sua gulodice. Em Salvador, fomos uma vez acompanhados de nossas mulheres e ficamos hospedados numa casa de um parente de Leila  – sua mulher à época – no Bairro de Itapuã. Como tinha passado a infância em Salvador, contei a ele das minhas peripécias como apreciador de pimenta. Fomos a uma baiana que vendia no seu tabuleiro uma série de iguarias, como acarajé, abará, vatapá, caruru, efó, acaçá, lelê e bolinho de estudante. Cheguei para a vendedora e disse na presença de nossas mulheres: – Baiana, quero uma punheta pra mim e pra meu amigo Rosalvo! E ela, dirigindo-se à nossas mu-heres: – Oxente, e as meninas não querem não? Um silêncio pairou no ar, todos perplexos olhando para mim. Tive que explicar que o bolinho de estudante, um doce feito de massa de tapioca frito, coco, açúcar e canela era conhecido popularmente como punheta. Ele riu muito durante a nossa permanência na capital baiana com o episódio. A partir de 2009, já doente, Rosalvo começou a viajar para fora do pa-ís, sempre acompanhado ora da sua filha Benária, ora com uma de suas mulheres à época – Vania ou Aline – , da família de Luiz Carlos Santana, o Lula, professor e procurador do município de Aracaju e de João Mendonça, engenheiro aposentado que laborava para terceirizadas da Petrobrás. Foram ao Chile, Argentina e à Europa. Em 2010 viajaram para Madrid e Roma, onde assistiram a Hora do Angelus, – o Toque das Ave-Marias – na Praça de São Pedro. Quando o Papa abençoou a todos e disse: – Vão em paz, que o Senhor vos acompanhe! Rosalvo respondeu estridentemente: – Muito obrigado!!! O seu grito chamou atenção de todos ao redor. Ele tinha que falar era Amém!

Já com dificuldades para andar, dizia ele que se estivesse atrapalhando os passeios, que o deixasse no hotel. Nem pen-ar, Rosalvo era uma companhia agradável nessas viagens. Em Paris, começou a comer escargot com cerveja. Enquanto seus amigos comiam um, ele comia três. Disseram-lhe que a conta seria dividida equitativamente. Ele deu bronca e chamou a todos de mãos de figa e miseráveis. Em todos os lugares – Paris, Amsterdã, Madrid, Roma, Buenos Aires, Santiago do Chile – sempre fazia os pedidos nos restaurantes em português. Ninguém entendia nada e ele insistia. A cena era pitoresca e sempre encerrada com muito riso. Em Amsterdã, ele se encontrou com um amigo gay de Aracaju, que ficou bastante solícito em encontrar seus conterrâneos. E passou a ser um guia naquela cidade holandesa. Ninguém aguentava mais as perguntas insistentes de Rosalvo ao amigo sergipano: – Você continua gay? E ele sempre respondia “sim”, sem qualquer constrangimento. Foi chamada sua atenção para o seu comportamento. Não adiantava, até que ele inquiriu: – Quando você faz amor, beija na boca? Todos ficaram avermelhados e a resposta veio de inopino: – E eu sou mulher de fazer amor sem beijo na boca?! Rosalvo ria e todos adoravam aquela alegria de viver estampada em seu rosto. A última vez que estive com ele foi no início de 2015. Fomos almoçar na Cantina d’Itália, na Orla da Atalaia. Ele estava de cadeira de rodas. Era servido por Aline, tanto o copo de cerveja levado à sua boca como a refeição. Não aguentei e chorei ao vê-lo naquela situação. Um filme passava pela minha cabeça e, em flashes, relembrava tantos e tantos acontecimentos políticos e passagens pela vida que vivenciamos.

Ele disse, carinhosamente, ao me vê-lo naquela situação – Fiz na vida o que deveria ser feito. Sou um homem feliz! Lembrei-me de uma frase cujo autor ignoro: A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos. Ele morreu em julho de 2015, aos 69 anos.

 * É advogado, ex-presidente da seccional da OAB e conselheiro do Tribunal de Contas de Sergipe.

Texto e imagem reproduzidos do site: destaquenoticias.com.br