O Amado Genolino
Leveza e densidade, o fortuito e o reflexivo, a crônica e o
ensaio caracterizam a prosa do itaporanguense Genolino Amado (1902/1989),
segundo o seu maior especialista, o poeta Jeová Santana (2000). Contraditórios
tais atributos – como a vida do autor, repartida entre a crítica social e a
freqüência aos gabinetes do governo Vargas –, eles transformaram-se em “janelas
abertas para a cidade e para o mundo”, de onde se pode observar um dos
“projetos de brasilidade” em curso no período 1930/1950 (Cf. Santana, 2000, p.
142-142) e a idéia de uma identidade sergipana para a primeira metade do século
XX.
Genolino Amado, cronista, ensaísta, tradutor, político,
professor de História Universal, foi um exilado voluntário. Sua produção esteve
fortemente marcada pelos ares metropolitanos. As referências a Sergipe, no
entanto, abundam nos livros que enfeixaram suas crônicas. A prosa
memorialística vai pelo mesmo caminho. O texto mais conhecido foi Um menino
sergipano (1977). A este, planejou dar prosseguimento, escrevendo “a história
do moço que estudou na Bahia e se formou no Rio de Janeiro”, e que se chamaria
“Um rapaz sergipano”.
Um terceiro livro contaria a sua vida em São Paulo, a
iniciação literária, o retorno ao Rio de Janeiro e a comemoração das bodas de
ouro do casamento dos seus pais. Essas memórias eram também “a narrativa de
toda uma família sergipana, a do velho Melk, a de Donana”, a dos quatorze
irmãos Amado, com destaques para o excepcional Gilberto e, quem sabe até, para
“um outro grande Amado que a Bahia nos levou, [s]eu primo Jorge, sergipano de
origem.” (Cf. Amado, 1977, p. 41-43; 1977b, p. 199).
O surto memorialístico de Genolino não se iniciou com a
visita que fez a Sergipe, nos anos 1970, início da escrita de Um menino
sergipano. Ele havia publicado O reino perdido (1971), livro de reminiscências
sobre a vida de professor de história no Rio de Janeiro. Quanto aos flagrantes
de memória sobre os modos sergipanos de pensar, agir e sentir já estão
dispersos em crônicas publicadas desde a década de 1940. É por essa janela que
se pode, em parte, observar “todo um Sergipe que vive na lembrança dos
sergipanos exilados, que constitui a obsessão poética do seu degredo”. (idem,
1946, p. 137). Exemplo dessa catarse: “cheiros de mangaba madura, músicas de
reisado, versos do ‘colibri’ ao som da Dalila, cadeiras na calçada, serenatas
de violão soluçante, a fala cantada do povo, as mocinhas de fita no cabelo
passeando ao largo da matriz.” (idem, p. 1977b, p. 136-137).
Mas, por que observar “em parte”? Porque o Genolino
rememorador é o mesmo que apõe a crítica à lembrança e reconhece a impotência
da cultura provinciana do final do século XIX frente à “revolução” operada pelo
rádio no início dos anos 1940: em Laranjeiras, Orlando Silva substitui Fausto
Cardoso; em Propriá, o reisado perde espaço para os sambas de Odete Amaral; as
histórias contadas sob os alpendres do Riachão dão lugar às novelas
radiofônicas; os “rr” do locutor César Ladeira estragam a prosódia das meninas
de Itabaianinha e de Itaporanga; as imagens do amor e da namoradinha
encarnam-se na figura de Linda Batista e não mais em Julieta; enfim, sucesso do
rádio significa “a morte da província”. (cf. Amado, 1946, 136-139).
O menos famoso dos Amado era também um homem da mídia, um
cultor da modernidade. Esse fato, entretanto, não o obriga a concordar com o
expresso aniquilamento de um modo de vida coletivo. Essa preocupação de
Genolino reverbera sempre nesses instantes de mudanças bruscas, desde
Maiackowsk aos críticos da globalização: “Se perdermos a província, que será de
nós, de nós que tanto já perdemos? Onde encontrar o sentido da nossa
existência, se lhe turvamos a fonte de onde ele sempre veio?” (idem, p. 138).
Trinta anos mais tarde, a fonte da singularidade (a província)
continuava pródiga. O rádio não era novidade, a televisão se impunha, mas ao
que parece, a “alma de Sergipe” não fora destruída pela modernidade. Ela foi
ganhando nitidez na cabeça do viajante Genolino à medida em que ele amadurecia,
exercitando todos os sentidos, analisando, generalizando, sintetizando,
comparando e diferenciando maneiras de viver, timbre de humanidade, inclinações
morais e sentimentais, dotes criadores, simpatias e idiossincrasias do
sergipano. (cf. Amado, 1977b, p. 193).
Genolino chegou a definir a alma de Sergipe: “um conjunto de
qualidades próprias, facetas caracterizadoras, aspectos específicos e
inconfundíveis dos meus conterrâneos, enfim, sergipanidade.” (idem, p. 193).
Mas, na hora de demonstrá-la academicamente, recuou. Seria muito cansativo e
trabalhoso!
“Sergipanizou”, portanto, ao léu, com o que lhe veio à
cabeça no momento da escrita (idem, p. 196). Agiu impressionisticamente,
tentando demonstrar que o sergipano era mais caboclo que negro,
majoritariamente pardo, sofredor. O nativo era, como o cearense, um eterno
migrante e, talvez – pela ausência de um porto –, um forte ascendente judeu. No
legado cultural, não se sobrelevaram os sonetistas, oradores e romancistas (Cf.
Amado, 1977, p. 192-200). A ausência dos Amandos Fontes anteriores à década de
1930, por exemplo, esteve relacionada ao caráter do “espírito sergipano”:
denuncista, influenciador, inovador. “No espírito sergipano, concluía Genolino,
“o senso crítico prepondera sobre o imaginativo, sobretudo de caráter meramente
estético.” (Amado, 1997b, p. 41).
Genolino Amado não era cientista social, nem saudosista
melancólico. Mas, é curioso como releva e, ao mesmo tempo, critica a idéia de
alma cultivada pelos patrícios do final do século XIX. Para o cronista, alguma
“coisa”, em última instância, deveria ser preservada. Que “coisa” seria essa, e
do passado de quem seria recuperada é a pergunta que não quer calar. Com a
introdução desse componente político, Genolino dinamiza o debate sobre o
passado, memória e identidade sobre o qual nos debruçamos no momento.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O Amado Genolino. A Semana em Foco,
Aracaju, p. 6B-6B, 02 nov. 2003.
Referências
AMADO, Genolino. O reino perdido: histórias de um contador
de história. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1971.
__________. A morte da província. In.: Os inocentes do
Leblon: crônicas do Rio. Rio de Janeiro: Globo, 1946. p. 136-139.
__________. Um menino sergipano: memórias. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977.
Momento entrevista Genolino Amado. Momento: Revista Cultural
da Gazeta de Sergipe, Aracaju, n. 9, p. 41-43, fev. 1977.
SANTANA, Jeová. A crítica cultural no ensaio e na crônica de
Genolino Amado. Campinas, 2000. 245 p. Dissertação (Mestrado em Teoria
Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de
Campinas.
Foto e texto reproduzidos do blog: itamarfo.blogspot.com.br
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