Um Pobre José.
Por Petrônio Gomes.
Viro as páginas amarelecidas de um álbum da infância e dou
com o rosto miúdo de José Antônio dos Santos lá no fundo, nesses retratos em
que só aparecíamos com os olhos, com um pingo da testa. E é surpreendente como
a alma toda se revela em simples riscos de uma fotografia antiga, como
despontam recordações inteiras da infância através de meio centímetro de uma
velha estampa...
Andávamos sempre juntos, eu, ele, Antônio Eduardo e Murilo
Barreto. “Maximino” era como o chamávamos, o mais pobre de nós quatro, talvez
até o mais pobre da classe. Mas nossa idade era aquela em que as diferenças
econômicas não contavam, uma idade de ouro sagrada, de ternas e perenes
recordações.
Vibrávamos, unidos, enquanto seguíamos para o colégio ou de
lá voltávamos, ao som das mesmas canções que “Maximino” soltava em seus
maviosos assobios. Lembro-me até de uma de suas favoritas, a bela “Minha
devoção” (My devotion), que ainda guardo, na voz feiticeira de Doris Day.
Revoltávamos, muitas vezes, também juntos, contra tudo o que
agredia a superfície límpida de nossas almas irmãs, pois estávamos na aurora da
vida. E não existem auroras que não sejam brancas, imaculadas e puras. É o
tempo das intenções que somente o romantismo entende e consulta, a idade que
não admite gestos embuçados ou mentirosos.
Mas José Antônio era daquelas pessoas cuja vida se resume em
um rosário de sofrimentos, um “caipora”, no dizer de minha mãe, para designar
as criaturas que a vida escolheu para castigar sem pena.
Uma vez, no Parque Teófilo Dantas, foi a ele que o guarda
municipal escolheu para agarrar pelo braço. Havíamos decidido atormentar os
macacos, e todos o fizemos com relativo sucesso. Mas na hora da retirada,
somente José Antônio resolvera permanecer. Seguro pela mão possante do guarda,
fora levado para casa. No dia seguinte, compareceu ao colégio ostentando sinais
físicos de uma surra violenta. Havia sido espancado pela madrasta, mas este
fato só nos foi narrado por um seu vizinho. Nesse dia, soubemos que José
Antônio era órfão de mãe.
De outra feita, um professor de maus bofes achou ter sido
Maximino o aluno indisciplinado que lhe havia atirado uma casca de laranja, mas
não foi. Nosso colega sofreu o clássico castigo do domingo, que eu também
conheci: eram cinco horas de pé, com a farda abotoada, no pátio do colégio. Mas
ele não denunciou o verdadeiro culpado, que se manteve em covarde silêncio.
Lembro-me bem da cena, pois fui ao colégio quando voltei do
cinema. Lá estava o Maximino de pé, mãos cruzadas às costas, molhado de suor.
Não me disse uma palavra, sorriu. Aguardava certamente um novo castigo da
madrasta, bem pior do que aquele. Um herói de doze anos.
Dispersamo-nos. Espalharam-se os protagonistas que compunham
o retrato do colégio. O tempo empalideceu a gravura, sepultou alguns, cumulou
de benesses outros, apagou os risos de nossas faces, trouxe o esquecimento para
muitos.
Certo dia, no Rio de Janeiro, vejo um homem sentado em um
banco na Cinelândia. Era o Maximino. Mal vestido, a barba crescida a cobrir o
lugar da gravata, de que tanto gostava quando menino. Pareceu-me que falava a
sós, como em conversa com o próprio destino, dialogando com o sofrimento. Ele
me reconheceu, mas desviou os olhos. Fingimos um desconhecimento mútuo, a bem
do amor próprio, em nome de um passado que não merecia um abraço carregado de
dor.
Segui com minhas lágrimas para a fila do ônibus do subúrbio,
deixando-o a sós com as suas, mas estreitando-nos em um abraço longo e
afetuoso.
Um pobre José que conheci na aurora da minha vida, exemplo
de humildade e coragem que eu daria tudo para ter a coragem de imitar.
Comecei a solfejar para mim próprio, a música “Minha
devoção”...
Crônica reproduzida de postagem feita por Gabriel de Andrade Gomes,
na página do Facebook/Minha Terra é Sergipe, de 18/04/2014.
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