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Publicado originalmente no site do Portal Infonet, em
07/11/2016.
Os 100 anos de Seixas Dória.
O ex-governador Seixas Dória, vivo fosse, faria 100 anos
Por Marcos Cardoso*
O ex-governador Seixas Dória, vivo fosse, faria 100 anos no
dia 23 de fevereiro de 2017. Esse herói sergipano nascido em Propriá e que
quase deu a vida na defesa dos seus ideais de liberdade e justiça, faleceu há
quase cinco anos, em 31 de janeiro de 2012.
A homenageada coluna política “Painel” da Folha de S.Paulo
quase dez anos atrás cometeu uma “barrigada” jornalística e uma ofensa
histórica aos sergipanos quando noticiou que, após a morte de Miguel Arraes, o
então prefeito de São Paulo, José Serra, teria passado a ser o único
sobrevivente entre os oradores do histórico comício da Central do Brasil, em 13
de março de 1964. Um e-mail foi enviado ao “jornal a serviço do Brasil”,
esclarecendo que o ex-governador João de Seixas Dória estava vivíssimo, do alto
do seu pouco mais de metro e meio de altura e 88 anos e meio de memória, a
lembrar que foi um dos principais oradores daquela noite de sexta-feira, dia
que definiu a queda de João Goulart e que desencadeou o golpe militar. Mas eles
não se deram ao trabalho de publicar nem um “erramos”. Autocentrado, o paulista
vive às voltas com os mistérios do próprio umbigo.
José Serra estava lá, tinha 21 anos, era presidente da União
Nacional dos Estudantes (UNE) e foi o segundo orador da noite. Discurso frio,
de principiante. Além, de Jango, os oradores mais aguardados pela multidão de
200 mil pessoas que se espremia na Praça da República, centro carioca, eram
mesmo o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, o governador de
Pernambuco, Miguel Arraes, e Seixas Dória. Este colunista abre um parêntese
para fazer uma inconfidência. Em conversa com o ex-governador sergipano, ele
transmitiu uma opinião e pediu que não fosse publicada, era informação em off:
“Eu acho que fui o mais aplaudido”. Quem há de duvidar? O talento de Seixas
Dória para discursar era reconhecido.
Ibarê Dantas (História de Sergipe República: 1889-2000)
recorda que, quando Seixas Dória discursava, não perdia oportunidade de
exercitar sua retórica, que se apresentava “mais incandescente” nos discursos
proferidos fora do Estado. “Seu pronunciamento de maior repercussão foi no
famoso comício de 13 de março, no Rio de Janeiro, quando anunciou
bombasticamente que, ao retornar a Sergipe, iria fazer a reforma agrária”,
conta o historiador. O comício resultou na cassação dos mandatos dele e de
Miguel Arraes. Os ex-governadores que defendiam as Reformas de Base foram
obrigados a conviver por longos quatro meses no degredo em Fernando de Noronha.
Arraes foi preso já no dia 1º e enviado imediatamente ao
arquipélago. Seixas, na madrugada do dia 2 de abril, sendo encaminhado primeiro
ao 29º Batalhão de Caçadores, em Salvador, onde passou sete dias. Da prisão na
capital baiana, enviou carta ao presidente empossado, Humberto de Alencar
Castello Branco, desafiando-o a apontar o crime pelo qual estava pagando. Não
obteve resposta, claro. Ali mesmo, o Exército lhe ofereceu a possibilidade de
retornar ao governo de Sergipe, desde que assinasse um manifesto de apoio ao
novo regime, como fizeram alguns governadores para se garantirem nos cargos.
Seixas negou-se a assinar: como olharia para a mulher, os filhos e os amigos depois?
Foi embarcado também para Fernando de Noronha.
“Miguel Arraes falava pouco, mas tinha opiniões muito
sábias”, disse o ex-governador de Sergipe, acrescentando que guardava as
melhores recordações do colega cearense que se tornou líder socialista e governador
de Pernambuco por três mandatos, morto no dia 13 de agosto de 2005, também aos
88 anos. “Foi um homem singular, que gostava de rapadura e que queria que eu
também comesse. Mas eu não gosto de rapadura”, afirmou Seixas Dória, revelando
que, indiretamente, evitou que ambos fossem assassinados.
“Uma vez, Arraes propôs que nós fugíssemos. No nosso quarto,
havia um buraco no chão coberto por uma tampa que nós poderíamos retirar e
escapar por ali. Eu fiquei receoso e ponderei: ‘Como nós vamos sair da ilha? O
continente é distante e acontece que eu não sei nadar!’ Depois, nós íamos dar
razão para que nos matassem. Aí eu o convenci do contrário.”
Arraes e Seixas liam muito na prisão, inclusive os jornais
Última Hora e Correio da Manhã, que eram contra o regime, mas que chegavam às
suas mãos graças à simpatia do coronel que governava o arquipélago. “Era um
homem civilizado, que nos tratava com respeito”, acrescentou. Ali, ele começou
a escrever os depoimentos que acabaram resultando no livro Eu, réu sem crime,
um libelo contra a opressão, publicado graças à interferência do amigo
jornalista e conterrâneo Joel Silveira e o apoio do jornal Correio da Manhã. O
livro tornou-se best-seller e vendeu mais de 5 mil exemplares na noite de
autógrafo, segundo cálculo do autor, lembrando, humildemente, que o número é
contestado. Rubem Braga escreveu, surpreendido, que a noite de autógrafos da
Livraria Entrelivros, no Edifício Avenida Central, resultou na venda de 2.432
exemplares.
“Espero que os rapazes do DOPS e os do SNI, que certamente
estavam por lá, tenham informado corretamente o coronel Borges e o general
Golbery: toda essa gente, na maioria humilde, fazia questão de mostrar que
estava solidária com o homem que foi arrancado do governo e preso durante meses
injustamente. E que a gente do governo sinta que a homenagem não era apenas à
pessoa de Seixas Dória: era a todos os que são demitidos, humilhados, presos e
torturados. Sinta que o povo brasileiro não aprova esses processos de
opressão”, disse o maior dos cronistas, em texto publicado no Jornal do Brasil
no dia 29 de dezembro de 1964.
Seixas Dória lembra que o momento de maior aflição para ele
e sua família aconteceu pouco antes de ser libertado. “Um dia, em Fernando de
Noronha, eu fui raptado por um grupo radical do Exército e levado de volta à
Bahia”. Nem ele e nem sua família sabiam onde se encontrava. Havia rumores de
que estava desaparecido. “Não fui morto porque se levantou um clamor da
imprensa e de alguns políticos cobrando uma explicação para o meu desaparecimento”.
Então mandaram o general Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar do governo
Castello Branco, para mostrar à família e à sociedade que ele estava vivo. “O
general me perguntou se eu estava sendo maltratado no 19º BC. Eu respondi que
dependia da interpretação que se quisesse dar. Eu comia a mesma comida dos
oficiais, portanto, nesse sentido não era maltratado. Mas convivia diariamente
com os gritos de dor dos torturados”.
No final do mês de março de 2004, quando a Fundação Joaquim
Nabuco, do Recife, promoveu um evento para debater os 40 anos do golpe militar,
Seixas Dória e Miguel Arraes participaram como conferencistas. Ali, o
ex-governador sergipano definiu o movimento como uma “revolta” e não uma
revolução, como denominavam os conspiradores. “Revolta é saque, é sangue, é
desordem, é violência, é quartelada. Revolução é quebra de estruturas
arcaicas”, comparou. E aproveitou para denunciar o descaso histórico dos
governos nacionais com o Nordeste. Descaso que está na divisão inconsciente que
há entre o Brasil do sul e o Brasil do norte e que se repete agora, quando o
maior jornal do país esquece de um herói sergipano, um herói nacional.
No dia do lançamento de Eu, réu sem crime, 22 de dezembro de
1964, Joel Silveira escreveu assim no Correio da Manhã: “João de Seixas Dória,
(...) 1,56 de altura, 58 de peso, gestos inquietos, palavra fácil, humilde e
teimoso ao mesmo tempo — um ‘carne de pescoço’. (...) Quando Sergipe acerta, é
assim. Acertou com Tobias, com Sílvio, com João Ribeiro. No caso de Seixas
Dória, estava acertando como governador, que em catorze meses de governo
modificou radicalmente a fisionomia oligárquica e semifeudal do Estado; e
acertou em cheio com o prisioneiro.”
Quem não acertou foi a Folha de S.Paulo, que nunca corrigiu
seu erro.
* Marcos Cardoso é jornalista, autor de "Sempre aos
Domingos:
Antologia de textos jornalísticos".
Texto reproduzidos do site:
infonet.com.br/blogs/marcoscardoso
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