Publicada originalmente no site do Jornal do Dia, em 17/08/2018
Teatro para mudar o mundo
É preciso amar o longe e a miragem
Os atores do grupo
Boca de Cena têm os pés
enterrados no Bugio, periferia de Aracaju. Mas jamais deixaram de amar o longe
e a miragem. 'Os cavaleiros da triste figura', o espetáculo mais recente da
turma, por exemplo, foi concebido em chão impossível, entre um lugar e outro,
como um andarilho íntimo de todos os caminhos que no próprio passo inventasse a
estrada.
Tudo começou com uma ligação interurbana. Após ser intimado
por telefone, o diretor Fernando Yamamoto (Clows de Shakespeare/RN), de quem
Rogério Alves se aproximou durante participação anterior no Festival de
Guaramiranga (CE), convidou a trupe para uma conversa olho no olho, em
Salvador. E lá, no Corredor da Vitória, lhes impôs a leitura do Dom Quixote.
Curiosamente, o clássico de Cervantes respondeu a todas as
angústias do grupo. Naquela altura, meados de 2015, o Boca de Cena já tinha
conquistado uma sede, projeção local, realizava trabalhos sociais, era
considerado um esforço dos mais bem sucedidos do teatro sergipano. Os seus
integrantes, no entanto, sentiam falta de uma assinatura cênica. E, virados em
um bando de loucos, perderam o juízo de uma vez por todas, empenhados na
criação de uma linguagem.
Eloquente como ele só, senhor de todos os gestos, Rogério
explica o busílis. "Apesar de muito aplaudido, com diversos projetos
contemplados em editais, o Boca de Cena vivia uma crise. Crise nas relações, de
propósitos, artística, financeira... Por isso eu digo que tudo surge de um big
bang. A gente queria dar um salto em relação ao que já tinha produzido e
precisava abraçar a novidade".
Dito e feito. O método sugerido por Yamamoto consistia na
leitura completa do livro. Cada capítulo deveria ser vivido em ato. Nesse
processo, personagens acabaram ganhando vida. Situações foram transportadas
para a realidade do palco. Isso durou pouco mais de um ano, um dia depois do
outro, até quando a experiência entre quatro paredes exigiu a organização de
uma dramaturgia propriamente dita. Antes mesmo de deitar a primeira palavra no
papel, entretanto, o escritor César Ferrário tratou de mergulhar no frenesi
coletivo. E o fez de peito aberto, disposto a acompanhar a viagem.O ator
Gustavo Floriano acredita que, de outro modo, os diálogos não dariam a mesma
liga. "Isso foi muito importante. Ele escreveu o texto especialmente para
o grupo, a partir da convivência com os atores. As palavras dos personagens
cabiam na boca da gente".
A montagem reuniu profissionais do País inteiro, uma equipe
da maior competência e muitos sotaques. Ator e produtor do grupo, com a
responsabilidade de fazer as contas e viabilizar o impulso criativo da turma,
Rogério explica que o cartão de crédito resolveu as questões mais práticas,
financiando hospedagem e passagens. Sem a solidariedade dos artistas
envolvidos, contudo, o espetáculo não teria pernas, não chegaria nem à praia de
Atalaia.
Assim, amparado na confiança dos outros, o espetáculo foi
posto de pé. Música, maquiagem, figurino, adereços, cenário, o pulso e a
postura dos atores em cena, cada aspecto contou com a colaboração de um
especialista (seria exaustivo nomear a equipe inteira, embora todos tenham sido
citados durante a conversa com o Jornal do Dia, nome por nome, na primeira
oportunidade). Alheio a qualquer estranhamento, o convite para embarcar na
aventura era realizado do modo mais direto possível: "Acredite no sonho da
gente". Felizmente, ante a potência anunciada, ninguém se fez de rogado.
Palco Giratório - Não por acaso, 'Os cavaleiros da triste
figura' ganhou o País inteiro. Contemplado pelo projeto Palco Giratório, do
Departamento Nacional do Sesc, dedicado ao mapeamento e a circulação teatral, o
grupo Boca de Cena já se apresentou em dezenas de cidades brasileiras. Até o
fim do ano, terá corrido o País de cabo a rabo. O ponto alto na trajetória do
grupo é prenúncio de novos horizontes. Trabalho não falta. O fidalgo de La
Mancha abriu portas além-mar, como demonstra a seleção do espetáculo em um festival
lusitano. Convidado a abrir o Festival de Guaramiranga, o Boca de Cena retorna
ao Ceará no dia 01 de setembro. Aprovado no Aldeia Sesc, também cumprirá agenda
nos quatro cantos de Sergipe. E por aí vai.
Segundo Felipe Mascarello, as trocas realizadas nesse
período, com o patrocínio do Sesc, a riqueza de um processo desenvolvido ao
longo de tanto tempo, coroado pelo sucesso, impõem novas metas a partir de
agora e uma disciplina muito rigorosa ao grupo. Ambição sem limites. A ideia é
mudar o mundo. Se o sonho é uma empresa de doidos, como foi aqui afirmado, em
oportunidade anterior, quando o espetáculo começava a ganhar forma, não há por
que conformar as possibilidades da criação às circunstâncias sempre tacanhas da
realidade.
Texto e imagem reproduzidos do site: jornaldodiase.com.br
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