Isso não se ensina.
Por Lilian Rocha*
Sou do tempo da ditadura. Tempo em que éramos obrigados a
desfilar em 7 de Setembro, a participar do hasteamento da bandeira todas as
quintas-feiras, de pé, debaixo de um sol causticante de verão, e a assistir às
aulas chatíssimas de OSPB (Organização Social e Política Brasileira) e EMC
(Educação Moral e Cívica). Até mesmo nossos cadernos, da marca “Companheiro”,
traziam na contracapa a letra do Hino Nacional. Enfim, tudo era feito de modo a
estimular na gente o amor pela nossa Pátria.
Só que comigo se dava exatamente o contrário. Quanto mais eu
era obrigada a marchar, usando gravatas e luvas naquele sol quente, menos amor
eu sentia pelo Brasil. Porque ‘patriotismo’, pra mim, era sinônimo, unicamente,
de obrigação, desconforto, calor, tonturas e nada mais.
O Brasil também me lembrava Geografia e Geografia, por sua
vez, me lembrava uma professora terrível que eu tive. Graças a ela, passei
muitas noites em claro, tentando decorar os afluentes da margem esquerda e
direita do Rio Amazonas, bem como o nome de todas as serras, bacias, picos,
portos e aeroportos do país. Essa professora foi minha durante 5 longos anos e
tudo o que eu não consegui aprender de Geografia eu devo, exclusivamente, a
ela.
Por isso, nunca me considerei uma filha orgulhosa da minha
pátria e confesso que nunca alimentei muito essa história de patriotismo. Não
acho que a gente deva amar um lugar só porque nasceu ali. Isso pra mim nunca
foi suficiente. É necessário mais. É necessário que o lugar desperte na gente o
orgulho de pertencer a ele.
Patriotismo é algo que todo mundo tem, adormecido dentro de
si mesmo. Que pode ser despertado subitamente, semelhante àquela emoção
espontânea que sentíamos, sempre que víamos Ayrton Senna dar a volta da
vitória, empunhando numa das mãos uma bandeirinha de papel, ao som daquela
música que virou símbolo dele. Naquele momento, o Brasil era um só.
Independente de gostarmos ou não daquele esporte, sentíamos orgulho dele.
Orgulho por saber que aquele campeão era um dos nossos. E orgulho do nosso país
por ter produzido um filho tão notável...
Patriotismo é aquela emoção que dá quando a gente está longe
do país e de repente ouve tocar o nosso hino... O coração dispara, os olhos
ficam cheios d´água e lá na garganta aparece aquele nó esquisito, que rouba o
pensamento da gente e deixa a gente sem fala...
É muito mais que saudade. É se ‘reconhecer’ parte integrante
de um lugar. E isso não se ensina, se desperta.
Foi o que aconteceu ontem comigo, quando entrei para
conhecer o ‘Museu da Gente Sergipana’. Sempre gostei de museus, de parar em
cada peça exposta, sem pressa, e ler todas aquelas explicações, para depois
repeti-las para alguém, com o maior entusiasmo. Adoro ver roupas e objetos
pessoais de alguém importante, de ouvir gravações antigas, de ver reconstituído,
bem ali na minha frente, o mesmo ambiente que alguém viveu. Minha imaginação
corre solta...
De um tempo pra cá, os museus ganharam uma nova concepção e
se tornaram mais interativos. Como o Museu da Língua Portuguesa, em SP, de quem
me considero a maior fã. Construído numa antiga estação de trem, bem no centro
da cidade, o museu tem três andares e mostra a língua portuguesa das maneiras
mais inusitadas, menos através de livros. Isso seria muito óbvio e a proposta
do museu é exatamente outra: inovação e muita, muita criatividade...
É meu passeio obrigatório sempre que vou a SP. No lugar onde
as pessoas se sentavam para esperar o trem, hoje é possível sentar e assistir a
história da nossa língua passar pela nossa frente, feito um trem em movimento,
mostrando como o português é falado nas mais diversas situações: na música, no
futebol, na culinária, nas brincadeiras...
Por isso, qual não foi minha alegria ao saber que o nosso
museu daqui seguia a mesma concepção do de lá! Resolvi ir até lá para
experimentar fazer turismo, mesmo sem ser turista...
Logo na entrada vi uma escultura de Zé Peixe, um dos mais
famosos personagens sergipanos, em sua pose preferida, pronto pra mergulhar no
Rio Sergipe e fazer o que sempre fez a sua vida toda: guiar as embarcações. Fiquei
feliz pela justa homenagem. Aquele homem pequenino e simples, que só vivia
descalço e que tantas vezes vi atravessar a rua para nadar naquele rio,
solitariamente, agora virara peça de museu e sua história seria contada e
recontada, preservada para sempre.
Depois de Zé Peixe, outra surpresa me aguardava lá dentro: o
carrossel de Tobias. Vi os turistas lendo atentamente, procurando entender sua
história, mas só quem foi criança em Aracaju, na década de 60, sabe o que
significava o carrossel de Tobias. Em vez de ouvir as explicações dadas aos
turistas, perguntei baixinho ao ouvido da moça onde conseguiram achar os
cavalinhos e o boneco Tobias, revelando pra ela uma intimidade com aquele
brinquedo que ela jamais seria capaz de entender...
E enquanto o carrossel girava, muitas lembranças da minha
infância também começaram a passar por mim na mesma velocidade, como se
estivessem ali todo o tempo, esperando somente que alguém ligasse um botão...
Senti uma coisa estranha dentro de mim, que fez meus olhos se encherem
d´água...
E assim foi durante toda a visita. Em cada salão, uma
surpresa me aguardava, trazendo de volta pedaços da minha infância,
brincadeiras que também foram minhas, personagens que fizeram parte da minha
história... Cheguei até a entrar num barquinho e percorrer o agreste
sergipano... sem dúvida, a aula de geografia mais prazerosa de toda a minha
vida!
E à medida que me reconhecia naquele jeito típico de falar,
de comer, de me relacionar com as pessoas, fui sentindo a mesma emoção que dá
quando estamos longe do país e ouvimos alguém falar a nossa língua...
De súbito, um sentimento de orgulho tomou conta de mim.
Orgulho de fazer parte desse país tão rico na diversidade e tão alegre na
maneira de contar suas histórias. Orgulho dessa hospitalidade nordestina, pura
e genuína, dessa intimidade que temos no tratar alguém, como se todos fizessem
parte da mesma família. Orgulho desse estado pequenininho, tão jovem ainda de
histórias para contar, mas que soube se vestir com suas melhores roupas para
mostrar aos visitantes um pouco da sua alma e do seu espírito.
Orgulho por me “reconhecer” parte daquela história e daquela
gente.
Sim, isso não se ensina, se desperta...
*Post de Lilian Rocha, em 10.01.14, na sua página do
Facebook.
Foto e texto reproduzidos do Facebook/Fan Page/Lilian Rocha.
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