"Ontem tive um grande prazer ao ver esta bela foto aqui neste
grupo (MTéSERGIPE) e a quantidade de lembranças que ela trouxe à tona. Como essa imagem
também me traz muitas recordações, tomei a liberdade de 'roubá-la' para
ilustrar, também, as minhas lembranças. Agora sim, lembranças e foto estão dentro da mesma
saudade..." (Lilian Rocha).
Por Lilian Rocha.
“Educandário Brasília”. Era esse o nome da minha primeira
escola. Nome comprido, que a gente tinha que escrever diariamente no caderno,
antes de todos os deveres. Com aspas e tudo. E depois das aspas, vinha uma
vírgula e a data por extenso.
Minha escola ficava na Rua da Frente, bem pertinho da
Capitania dos Portos e era dirigida por quatro senhoras, também professoras: D.
Alaíde, D. Helena, D. Mili e D. Iolanda.
Talvez elas nem fossem tão senhoras assim naquele tempo, mas
quando se tem 7 anos, qualquer pessoa com mais de 15 já é considerada uma
senhora. Ainda mais quando se tem cabelo azul! Isso mesmo, cabelo azul! Duas
delas, D. Mili e D. Iolanda, tinham cabelos azuis e isso, pra mim, era um dos
mistérios mais indecifráveis do universo, pois quando se tem essa idade, a gente
nem imagina que existe uma coisa chamada ‘tintura para cabelos’...
Minha farda era uma saia vermelha e branca, plissada, com
suspensórios que se cruzavam atrás. E abotoando a blusa branca, uma gravatinha
vermelha, feita do mesmo tecido da saia.
Estudávamos pela manhã e à tarde voltávamos para ‘fazer
banca’, expressão genuinamente sergipana, que até hoje não sei bem o que
significa, etimologicamente falando. Mas sei muito bem o que significava
naquele tempo.
‘Fazer banca’ significava almoçar e voltar para o colégio 1
e meia da tarde para fazer os deveres e estudar as lições para o outro dia. Uma
solução prática que as mães encontraram para deixar seus filhos em lugar
seguro, enquanto trabalhavam. E que até hoje é usada, sob pseudônimos modernos
de ‘aula de reforço’, ou ‘turno integral’.
Fazer banca significava ler em voz alta e em grupo uma mesma
leitura duas ou três vezes e morrer de vergonha quando a professora passava
pela minha fila e me surpreendia cochilando, diante daquela história sem graça,
que todo mundo já sabia o final. Nessa hora, ela levantava a voz e eu tomava um
susto danado...
A única coisa boa da banca era ganhar uma goiaba todos os
dias de Kátia, minha colega que morava numa casa de muro enorme, todo rosa. Até
hoje, quando como uma goiaba, sinto o gosto do sorriso amável de Kátia.
Estudei em quase todas as salas e experimentei todas as
cores de plástico com as quais forrávamos os livros e cadernos: vermelho, no 1º
ano, amarelo no 2º, azul no 3º e verde no quarto. Mudar para outra ‘cor de
plástico’, portanto, era tão importante quanto ser promovido num exame de
faixa...
Adorava cópias e ditados, mas detestava questões e
problemas. Especialmente aqueles que me pediam pra descobrir qual a idade do
vovô, se ele tinha o triplo da idade de Joãozinho, que por sua vez, tinha a
metade da idade da titia. Que mania mais feia tinha a minha professora,
querendo saber a idade de todo mundo!
Na hora do recreio, meus olhos não se desgrudavam da
lancheira de Suzana Barreto, pois era a única que trazia, não a tradicional
garrafinha plástica com ki-suco, mas uma garrafinha verde, de ‘Guaraná
Champagne Antárctica’. E diante dos olhos invejosos de toda aquela plateia,
Suzana tirava um abridor da pasta e com uma habilidade impressionante,
livrava-se da tampinha. O barulhinho da tampa se abrindo, deixando o gás
escapar, era música para meus ouvidos!
Pode parecer uma bobagem, mas refrigerante, na década de 60,
era privilégio de poucos! Era uma coisa bastante cara, que só era encontrada em
poucas festas de aniversário. O que era servido nas festas daquele tempo era
ponche, um suco de uva com pedacinhos de maçã, que me dava um trabalho danado
pra beber, pois nunca gostei de maçã...
Também estudei com Martha Bragança, dona dos deveres mais
bonitos do colégio. Além de ser a melhor aluna em português e de ter uma letra
linda, Marthinha também era muito caprichosa e gostava de fazer, com lápis de
cor, todos os traços, acentos e sinais de pontuação de cada dever, coisa que eu
achava tão linda que logo tratei de imitar. Até hoje, quando me vê, ela me dá o
mesmo sorriso carinhoso de sempre.
Mas afora o guaraná de Suzana e os deveres coloridos de
Marthinha, havia uma outra coisa que me fascinava: eram os desmaios de
Emilinha.
Emilinha era um pouco mais velha que eu e estudava na turma
de Denise, minha irmã. Mas todo mundo conhecia Emilinha. Ou, pelo menos, os
desmaios dela, porque quando a gente menos esperava, alguém entrava correndo
pra avisar: “Emilinha desmaiou!”
Eu não sei por que ela desmaiava tanto e nem podia imaginar
que aquilo pudesse ser uma coisa séria, mas a verdade é que eu achava linda
aquela cena e queria porque queria desmaiar igual a ela! E muito melhor do que
o desmaio era o que vinha depois. Aquele abrir de olhos sonolento e esquecido,
e de súbito, aquela clássica pergunta que eu tanto gostava de ouvir: ‘O que
aconteceu?’
Por isso, eu treinava em casa. Afastava um pouco a cama do
meu quarto e tentava cair como ela. Suavemente... Mas um desmaio fingido nunca
é a mesma coisa. Todo mundo sabe que é fingido e ninguém corre pra ajudar.
Mas com Emilinha era diferente. Ela tinha ‘classe’ para
desmaiar.
Muitos e muitos anos depois, eu estava no banco, tentando
pagar alguma coisa muito urgente. Era dia de pagamento, o banco estava cheio,
cada fila maior que a outra. Não tinham inventado ainda essa maravilha chamada
‘caixa eletrônico’, nem tampouco a lei dos 15 minutos. Todo mortal tinha que
enfrentar fila, fosse ele velho ou novo.
Foi aí que me lembrei de Emilinha...
Me encostei na parede e fui revirando os olhos,
devagarzinho, como se estivesse perdendo os sentidos. Depois, de olhos
fechados, respirei fundo e passei as costas da mão pela testa.
- A senhora está passando mal? – perguntou alguém.
Revirei ainda mais os olhos e fui me arriando pela parede
até chegar ao chão. Imediatamente alguém me trouxe um copo de água, outro
começou a me abanar, enquanto outros tentavam me reanimar:
- Calma, vai passar, respire fundo...
- Deve ser pressão baixa, a senhora comeu alguma coisa?
- É melhor deixar ela passar na frente...
Ao ouvir aquilo, balancei a cabeça e agradeci, baixinho:
- Não precisa, obrigada, eu já estou melhor, dá pra
esperar...
Mas todos que estavam na minha frente reagiram prontamente:
- De jeito nenhum. A senhora não está em condições. Pode
passar na frente.
Diante de tantas gentilezas, não tive outra alternativa,
senão pagar a conta e sair, agradecendo a todos...
Principalmente... à Emilinha!
(Lilian Rocha - 29.11.12)
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