Publicado originalmente pelo site da Folha, em 20/11/2016.
Um diálogo vital entre o poeta e Antônio Carlos Viana.
Por Paulo Henriques Britto*
Poeta e escritor, o autor rememora sua amizade com Antônio
Carlos Viana e comenta a obra do sergipano, que morreu em 16 de outubro. Doutor
em literatura pela Universidade de Nice, Viana dedicou-se ao conto, tendo
publicado coletâneas do gênero pela Companhia das Letras, como a elogiada
"Cine Privê" (2009).
Quando conheci Antônio Carlos Viana, eu tinha 17 anos, ele,
24. Sergipano havia pouco tempo no Rio, Antônio lecionava português numa escola
particular da Tijuca, onde eu cursava a segunda série do colegial. Seu método
de ensino era nos fazer ler literatura: foi com ele que descobri Graciliano
Ramos e Clarice Lispector.
Convivemos na mesma cidade por menos de um ano, mas nos
tornamos amigos para o resto da vida. Logo ele se mudou para Teresópolis, e
pouco depois publicou seu primeiro livro de contos, "Brincar de
Manja". Nessa obra de estreia já se percebiam alguns elementos que
estariam presentes ao longo de toda a sua trajetória: as contingências do corpo
no sexo e na morte, a ignorância e vulnerabilidade da infância.
Havia também um toque de fantasia que refletia as suas
leituras da época: José J. Veiga, García Márquez e Cortázar. Após alguns anos
em Teresópolis, Antônio foi estudar no Rio Grande do Sul; eu fui para a
Califórnia, e nossa amizade passou a depender dos correios, depois substituídos
pela internet.
Embora tivesse viajado para estudar cinema, eu dedicava a
maior parte do meu tempo no estrangeiro a escrever contos –em inglês, já que
pensava seriamente em não voltar mais para o Brasil, então vivendo o pior
período da ditadura. Menos de dois anos depois, porém, já estava de regresso ao
Rio, trabalhando como professor de inglês e reescrevendo em português o que eu
havia produzido na Califórnia.
Antônio tornou-se então meu consultor literário mais
importante: eu lhe enviava versão após versão de meus contos. Sabia que ele
tinha ouvido absoluto para clichês, impropriedades verbais, incoerências na
fala de personagens; sabia também que ele me diria exatamente o que pensava dos
meus escritos.
Em 1981, Antônio publicou seu segundo livro, "Em Pleno
Castigo". Sua prosa estava ainda mais depurada e seca; a temática
fantástica fora atenuada, e o foco era nas personagens que se tornariam
fundamentais em seu trabalho. De um lado, crianças e adolescentes tentando
entender as forças misteriosas que impelem seus corpos; de outro, pessoas mais
velhas, principalmente mulheres, solitárias, isoladas ou marginalizadas,
esforçando-se para sobreviver com um mínimo de dignidade.
A voz do narrador, em primeira ou em terceira pessoa,
mantinha um equilíbrio delicado entre objetividade absoluta e empatia, entre
crueldade e humor sutilíssimo.
Em 1986, fiquei 40 dias hospedado na Cité Universitaire, em
Paris, onde Antônio estava morando com a mulher e o filho, trabalhando numa
tese de doutorado sobre a poesia de João Cabral. Nessa minha estada, tínhamos
longas conversas sobre tudo, inclusive Cabral. Lembro-me da crítica severa que
ele fez a alguns dos poemas do meu primeiro livro, publicado anos antes.
Embora não tivesse usado o termo, estava claro que, para
Antônio, neles eu cometera o pior dos pecados literários: o sentimentalismo. Se
Cabral já era meu superego poético, a crítica de Antônio reforçou-o ainda mais
nesse papel.
De Paris, Antônio voltou para Aracaju, onde moraria pelo
resto da vida, trabalhando na universidade, traduzindo e escrevendo. Continuava
a ler e criticar meus contos, e também me mandava os que ele ia escrevendo, num
ritmo para mim inimaginável: seu terceiro livro saiu em 1993. Nessa década,
estivemos juntos duas vezes, em eventos acadêmicos em Aracaju para os quais ele
convidou a mim e a minha mulher, Santuza Cambraia Naves.
Numa dessas idas a Sergipe, encontramos Antônio em pé de
guerra com boa parte da comunidade literária local. Uma proposta de lei
estadual obrigaria as escolas a apresentar aos alunos a "literatura
sergipana" antes da brasileira; Antônio argumentava que não existia
"literatura sergipana", e sim autores de literatura brasileira que
haviam nascido em Sergipe, o que não era a mesma coisa. O provincianismo era
uma das poucas coisas que o tiravam do sério.
NADINHA
Embora já tivesse conquistado vários prêmios literários, até
então Antônio era publicado por editoras pequenas, que não proporcionavam a
seus livros uma distribuição decente. Quando, em 1999, a Companhia das Letras
me pediu para fazer uma seleção de suas três obras até ali, aceitei a
incumbência com entusiasmo, sabendo que daquela vez Antônio teria um público
maior. "O Meio do Mundo e Outros Contos" incluía também uns poucos
textos ainda não reunidos em livro, como "Nadinha", uma pequena
obra-prima de concisão radical.
Em 2004, finalmente publiquei meu primeiro livro de contos,
dos quais apenas dois não remontavam aos anos 1970; dediquei-o a Santuza e a
Antônio, meus leitores de primeira hora. No mesmo ano, Antônio lançou
"Aberto Está o Inferno", que começava por "Ana Frágua", quatro
páginas em que um dos temas prediletos do autor, a perda da inocência infantil,
é abordado com um extraordinário misto de crueza e delicadeza.
Os contos estavam ainda mais curtos; um deles,
"Inveja", tinha apenas 14 linhas. Cinco anos depois, Antônio lançou
"Cine Privê", retribuindo a dedicatória que eu lhe havia feito.
Embora ali a infância continuasse presente, suas narrativas agora tematizavam
cada vez mais a velhice, como indicam alguns dos títulos: "O Terceiro
Velho da Noite", "A Velhice Chega de Mansinho" e "Minha Avó
Inocência".
Em 2013, eu e Antônio fomos à Alemanha participar da Feira
de Frankfurt; pela primeira vez em muitos anos –fora um rápido encontro
anterior em Paraty–, pudemos conversar. Aliás, o que mais fiz nessa viagem foi
conversar com Antônio, no quarto do hotel, tomando o vinho que comprávamos na
loja de conveniência do posto de gasolina.
Depois passamos mais de um ano sem nos vermos, eu lhe
mandando versões sucessivas dos contos que estava aprontando para um segundo
livro, ele de início resmungando que não escrevia mais nada, por não ter mais o
que dizer. Resolvi incentivá-lo a retomar umas histórias que havia abandonado,
e com minha insistência ele acabou tomando gosto e terminando um número de
textos suficiente para um novo livro.
Um dos contos, que daria título ao volume – "Jeito de
Matar Lagartas"–, era um dos melhores que ele já havia escrito; em outro,
"Um Traidor", Antônio retomava o tema da solidão na velhice com um
humor irresistível.
Depois de um período de um mês ou dois sem nos escrevermos,
no final de 2014 recebi um e-mail de conhecida minha e de Antônio dizendo que
ele estava morrendo de câncer. A notícia me deixou atônito, porque ele nunca
havia me falado de doença. Liguei para seus familiares e soube que o mal estava
avançado, com pouca esperança de cura, mas que se estava tentando um tratamento
de risco.
Comprei uma passagem para Aracaju para janeiro, quando eu já
estaria de férias na universidade, sem ter certeza de que ainda o encontraria
com vida. Nesse ínterim, a Companhia das Letras me pediu uma orelha para o novo
livro de Antônio em caráter de urgência; eles fariam tudo para que o livro
saísse enquanto ele ainda estivesse vivo.
Em janeiro de 2015, encontrei Antônio ainda muito
debilitado, recuperando-se de um tratamento brutal, mas que funcionou por algum
tempo. Passamos alguns dias conversando, como em Frankfurt; mas a literatura
não era mais nosso tema principal. Só então fiquei sabendo das idas e vindas da
doença, dos tratamentos mais e menos acertados, coisas a respeito das quais,
movido por sei lá que sentimento de pudor, ele nunca me dissera nada.
Pouco depois de voltar ao Rio, recebi meu exemplar
autografado do novo livro, e nossa correspondência retomou o ritmo de sempre.
Quase três meses atrás, mandei-lhe o rascunho de um conto novo, sobre cuja
viabilidade eu tinha (e ainda tenho) sérias dúvidas. Ele me respondeu dizendo
que não poderia ler no momento, por estar se recuperando de uma nova cirurgia.
Pouco mais de um mês depois, sucumbiu a uma anemia causada pelo câncer.
Depois fiquei sabendo que Antônio, perfeccionista como
sempre, antes de ir para o hospital pela última vez apagou do disco rígido de
seu computador os rascunhos dos contos que não tivera tempo de terminar.
* Paulo Henriques Britto, 64, é poeta, tradutor e professor
do departamento de letras da PUC-Rio.
Texto reproduzidos do site: folha.uol.com.br
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