Reprodução da obra de Edidelson Silva/Imagem da Secult.
Postada por Isto é SERGIPE, para ilustração do presente artigo.
Publicado originalmente no blog Primeira Mão, em 04/09/2011.
Do falar sergipano.
Por Francisco José Alves - fjalves@infonet.com.br e
Antônio Felix de Souza Neto - antfelixsouza@usp.br
Você já ouviu alguém falar /AUKUÍRIS/, /TREVUÁDA/,
/TERNONTÔNTE/?
Se é um sergipano natural e residente do município de
Propriá/SE, com idade acima de 70 anos, e tem em seu vocabulário palavras
comuns aos variados estratos socioculturais do seu tempo, certamente responderá
que sim. E se você não é esse propriaense, mas é sergipano, e tem essas
palavras em seu vocabulário ou já as ouviu na fala de pessoas de outros
municípios de Sergipe, é indício de que essas palavras identificam algo da fala
de sergipanos. Se você se sente sergipano de verdade, mas nunca ouviu isso ou
não se lembra de tê-lo ouvido, não se preocupe! Não é por isso que você deixa
de ser sergipano. Há outras coisas que identificam os sergipanos. E para
aqueles que nem mesmo conseguem decifrar esses vocábulos, então aí vão suas
respectivas representações gráficas na escrita convencional: ‘arco-íris’,
‘trovoada’, ‘trasanteontem’ ou ‘trasantontem’. Agora, o leitor pode voltar à
primeira linha deste texto e comparar aquelas pronúncias do propriaense com a
pronúncia convencional destas últimas. O que há de diferente entre elas?
E o que você diria de /KARKANHÁ/, para ‘calcanhar’;
/MARIMBONDI/, para ‘marimbondo’; /TREISÓU/, para ‘terçol’; /XAMIXÚGA/, para
‘sanguessuga’; /ISTÂMBU/, para ‘estômago’; /GUMÍTU/, para ‘vômito’;
/BERKULÓZI/, para ‘tuberculose’; /ARUPEMBA/, para ‘urupema, peneira’; /APILÍDI/,
para ‘apelido’; /KARÉRMA/, para ‘quaresma’; /LABIZÔNI/, para ‘lobisomem’;
/ÕIMBU/, para ‘ônibus’; /MUDUBÍM ou MINDUBÍM/, para ‘amendoim’?
Pois bem, todas estas pronúncias estão documentadas como
características da fala de sergipanos do século passado.
Diante da norma culta, as pronúncias desses sergipanos se
caracterizam por: (1) supressão de fonema (ex.: ‘tuberculose’ é /BERKULÓZI/);
(2) adição de fonema (ex.: ‘terçol’ é /TREISÓU/); (3) substituição de fonema
(‘arco-íris’ é /AUKUÍRIS/, ‘trovoada’ é /TREVUÁDA/, ‘vômito’ é /GUMÍTU/); (4)
troca de lugar do fonema na palavra (ex.: ‘terçol’ é /TREISÓU/); e (5) troca de
lugar do acento tônico da palavra (ex.: ‘vômito’ é /GUMÍTU/).
Mas não é só no plano da pronúncia que se encontram
características linguísticas de sergipanos do século passado. Há ainda outras
palavras que foram documentadas como do vocabulário desses sergipanos:
/KAKÓTA/, /UNZONÊTU/, /KALIFÕN/, /TAÍN/, /UTÊMPU/, /MARRÁIU/, você as conhece?
É possível que não. Mas certamente conhece seus respectivos sinônimos:
‘rótula’, ‘óculos’, ‘sutiã’, ‘cicatriz’, ‘menstruação’, ‘bola de gude’.
Outras palavras encontradas em Sergipe, também no século
passado, apresentavam acepções que podem ser peculiares do português daqueles
sergipanos: /KUMPANHÊRA/, /NEGUÍNHU/, /SIMPATÍA/, /MORTÁLHA ou MORTÁIA/, /XÊRU/
e /ANTIGU/ foram encontradas com as seguintes acepções: ‘útero’, ‘sinal’,
‘franja’, ‘papel de enrolar cigarros’, ‘perfume’ e ‘desconfiado’. Você já
conhecia essas acepções?
Todos os vocábulos que enfocamos aqui – com pronúncias e
acepções de sergipanos – foram extraídos de trabalhos de folcloristas,
literatos, linguístas etc., que datam desde início do século passado. Mas eles
ainda podem ser encontrados na fala de sergipanos hoje em dia.
Além desses vocábulos que foram documentados por
folcloristas, literatos, linguístas etc., palavras/expressões como /BERTUÊJA/
(para dizer ‘brotoeja’), /KUAZIMÊNTI/ (para dizer ‘quase igual’), /XIMBÁ/ (com
o sentido de ‘fracassar’), /BIGÓRNA/ (com o sentido de ‘dormida, soneca’),
/BUKÁDU/ (com o sentido de ‘comida’), /DI ÔÔÔJI ou É D’ÔÔJI/ (para dizer ‘já
faz muito tempo’) são facilmente encontradas na fala de sergipanos.
Como se explicam esses fatos linguísticos encontrados no
português falado em Sergipe?
A palavra /KUAZIMÊNTI/ (para dizer ‘quase igual’) parece
derivar de ‘quase’, pois, apresenta a terminação ‘-mente’, característica dos
advérbios de modo. Essa palavra amplia o léxico da língua portuguesa, pois não
há no português qualquer outra palavra com o seu significado. Curiosamente, ela
também é encontrada em línguas mistas de povos africanos que foram trazidos
para o Brasil durante a época da escravidão. Como se isso não bastasse, em
francês, língua irmã do português, existe a palavra quasiment (para dizer
‘quase’). Você acha que isso são só meras coincidências?
A palavra /BUKÁDU/ (‘bocado’), embora mais regularmente
usada com o sentido de ‘muita/muito’ (ex.: tinha um /BUKÁDU/ de gente na rua;
ele ainda viveu um /BUKÁDU/) aqui em Sergipe atualmente, está dicionarizada com
a seguinte acepção: ‘porção de comida que cabe na boca’. Assim, além da
pronúncia (/U/ em lugar de ‘o’), dois outros processos podem ter ocorrido ai:
primeiro um processo unicamente semântico – o todo (/BUKÁDU/ = ‘comida’) foi
usado em lugar da parte (‘bocado’ = ‘porção de comida que cabe na boca’);
depois, a palavra mudou de categoria e de significado – de substantivo ‘comida’
para pronome indefinido e advérbio ‘muita/muito’.
A locução adverbial /DI ÔÔÔJI ou É D’ÔÔÔJI/ (com sentido de
‘faz muito tempo’) apresenta uma característica muito particular. Ela só
adquire este sentido quando pronunciada com entonação específica, ou seja,
quando pronunciada com o Ô alongado (do tipo ÔÔÔ), como se fosse cantando. Caso
contrário, ela pode ser confundida com outra locução adverbial (‘de hoje’), que
significa ‘referente ao dia de hoje’. Ela pode derivar de uma estrutura maior
(ex.: não é de hoje...), que sofreu redução e teve a perda compensada pela
entonação.
Na fala de sergipanos, há ainda expressões como /KABRÚNKU/,
/KARÁIU/, /GÔTA SERÊNA/, /FÍ DU KÂNSU MARIANU/, /FÍ DU KRÂNKU/, /FÍ DA KÓLA/,
/FÍ DI MARÍA MÁIZ EU/, regularmente usadas em xingamentos. Os xingamentos se
constituem sempre com conotações de nomes de órgãos genitais, coisas
indesejáveis (doença, sensações de vergonha, nojo etc.), coisas censuráveis
(religião, conduta social etc.). Sendo assim, é provável que /KABRÚNKU/ derive
da palavra ‘carbúnculo’ (do jargão da medicina), que designa ‘infecção pela
bactéria antraz’; /GOTA SERÊNA/ derive do nome da doença ‘gota’, caracterizada
por dores nas articulações; e /FÍ DU KRÂNKU/ (onde /FI/ e /KRÂNKU/ devem ser
variantes de ‘filho’ e ‘cancro’, respectivamente) derive do nome da doença
venérea ‘cancro’, caracterizada por feridas na pele.
Você pode até afirmar que, mesmo sendo sergipano, não usa
essas palavras e expressões (com as respectivas pronúncias, acepções e
entonações enfocadas aqui), mas eu duvido que você nunca tenha ouvido nenhuma
delas em Sergipe! Elas fazem parte do vocabulário de muitos sergipanos. Basta
se dar ao desfrute de ir às feiras, aos campos de futebol, aos parques e a
outros lugares públicos da capital ou se dar ao luxo de viajar pelos municípios
e povoados de Sergipe, sempre prestando atenção nas falas de sua gente, ali
mesmo, em longas prosas com seus conterrâneos e você poderá ouvi-las.
Antes de serem tratadas como erros de português, vícios de
linguagem, desvios da norma culta, impropérios etc., elas devem ser
interpretadas como realidades linguísticas das variedades do português falado
em Sergipe. Algumas delas podem ser até mais antigas que a norma culta (polida)
do português falado no Brasil.
Afinal..., podemos ou não tratá-las como sergipanismos
linguísticos? Podemos ou não tratá-las como coisa original, exclusiva e
genuinamente sergipana?
Ainda não dá para responder com segurança a essas perguntas,
pois, tudo o que há em uma língua natural – e isto vale também para as falas
(sotaques) regionais – não se deve somente a criações linguísticas, mas também
a heranças linguísticas e a empréstimos linguísticos. Muitos dados linguísticos
são herdados ou emprestados sem sofrer qualquer alteração.
Há certamente aspectos das falas dos sergipanos que os
distinguem e os identificam como tais. Talvez não somente na pronúncia dos
vocábulos, no próprio vocabulário, nas acepções dos vocábulos, na entonação,
mas também no ritmo da fala (duração de sílabas átonas, pré-tônicas, tônicas,
pós-tônicas etc.). Pode haver algum recurso de expressividade peculiar das
práticas linguageiras dos sergipanos: nas formas de cumprimento, saudação,
despedida, aprovação, reprovação, atenuação, ironia, deboche, reprimenda etc..
Até mesmo nas trocas de turno (troca de falante) nos diálogos: as formas de
interrupção, as hesitações, as pausas. Mas, é geralmente através de pesquisa
que se identificam e se patenteiam as características linguísticas de cada
região, cada estado etc.. Até onde eu sei, ainda não há pesquisa que revele
originalidades ou exclusividades linguísticas sergipanas. Enquanto isto não
acontece, os sergipanos (sergipanistas em especial) podem se contentar com o
sentimento de pertencimento linguístico, ao se depararem com características
linguísticas que lhes parecem familiares – familiares dos sergipanos!
Texto reproduzido do site: primeiramao.blog.br
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