Capa do livro (imagem: divulgação).
Publicado originalmente no blog Primeira Mão, em 16/03/2014.
Elites sociais sergipanas: Os fazendeiros
Por Afonso Nascimento*
Recentemente, o historiador Ibarê Dantas publicou um novo
livro que enfoca a trajetória de quatro membros de sua família, todos eles
fazendeiros de lá das bandas de Riachão, em Sergipe. É uma obra de memórias
familiares que recebeu três resenhas positivas publicadas neste mesmo jornal.
Em razão disso, resolvi não escrever mais uma, porém fazer um comentário geral
sobre esse que é o seu décimo livro (DANTAS, Ibarê. Memórias de Família. O
Percurso de Quatro Fazendeiros. Aracaju: Editora Criação, 2014).
Nada direi sobre o seu autor - a não ser no último parágrafo
deste texto - pois se trata de um intelectual assaz conhecido dos leitores
interessados em história política sergipana. Entrarei diretamente no livro. Ele
tem duzentas e sessenta e seis páginas, contendo quatro anexos. Na capa e na
contracapa são expostas duas fotografias da Fazenda Boqueirão, uma tomada pelos
fundos e outra que mostra a frente da casa alta e com telhas romanas. A foto da
capa, além da casa e do curral, exibe um rio e vastas extensões de terras com
árvores esparsas. A outra foto expõe, no alpendre da casa, cinco gaiolas de
passarinhos, uma porta e quatro janelas. O livro está estruturado em quatro
capítulos correspondentes aos quatro fazendeiros cujos percursos são revelados.
O terceiro capítulo, referente ao pai do autor, é, de longe, o mais alargado. A
sua filha Sílvia Dantas escreveu o prefácio.
O livro é uma mistura de obra de historiador e de
memorialista. Além de narrador, Ibarê Dantas é personagem e, naturalmente,
fonte, pois, num tipo de trabalho que se quer de memórias, deve ter ouvido
muitas histórias de sua família ao longo de sua vida - como acontece com
qualquer família de qualquer classe social. Enquanto membro de uma família de
fazendeiros, como era de se esperar, o autor mostra um grande conhecimento
sobre como vivem os fazendeiros, os quais menciona como "elite
local", o que, dito com outras palavras, significa "aristocracia
rural" sergipana do gado. Voltando a falar de fontes, Ibarê Dantas recorre
a fontes orais na forma de depoimentos de parentes seus e de outras pessoas, do
seu arquivo privado sobre a sua família, de documentação familiar e de
instituições públicas a que teve acesso, de jornais, entre outras.
O livro trata de um universo social que me é completamente desconhecido,
ou seja, o mundo dos fazendeiros sergipanos. Quem são pessoas que compõem essa
fração da classe dominante sergipana mais antiga, posto que Sergipe nasceu como
uma grande fazenda que produzia gado para abastecer, no período colonial, aos
mercados de Pernambuco e da Bahia? Cuja importância econômica foi diminuída
quando o território sergipano foi transformado numa grande plantation de cana
de açúcar? E que voltou a ter a sua relevância no PIB sergipano quando a
economia canavieira perdeu espaço na competição com a produção de cana de São
Paulo nos anos 1930 e 1940?
Pelo que entendi (se entendi) da leitura do livro, as
famílias dos fazendeiros lembram "empresas" ou
"organizações" com fins lucrativos. Com efeito, os fazendeiros, além
de venderem as mercadorias produzidas em suas terras (gado, leite, cavalos,
produtos agrícolas diversos, etc.), também compram e vendem fazendas. Existe,
mesmo, um mercado de fazendas. Aqueles fazendeiros bem sucedidos aumentam seu
patrimônio adquirindo propriedades rurais de outros membros desse grupo social.
É por conta disso que, na narrativa de Ibarê Dantas, há um grande espaço
dedicado às heranças, aos cartórios, à transmissão de terras de parentes para
parentes e não parentes, aos inventários, etc. Não deixou de chamar a minha
atenção o seu recurso feito por fazendeiros aos bancos públicos para
empréstimos, os lucros e as perdas, bem como a necessidade de lidar com
problema como secas, estiagens, doenças dos animais, etc.
O problema da mortalidade infantil entre as famílias de
fazendeiros não passou desapercebido. A ideia que eu tinha era a de que essa
questão tinha a ver somente com as classes trabalhadoras rurais. Todavia, com
leitura do livro de Ibarê Dantas, ficou a impressão de que a mortalidade
infantil também afetava as classes abastadas sergipanas. Nessa mesma linha, a
existência de grandes proles entre famílias de fazendeiros era algo muito
corrente, no período tratado pelo livro, a saber, da primeira metade do século
XIX a fins do século XX. Por conta disso, posso imaginar o problema que deveria
ser a questão da transmissão de bens aos herdeiros - muitas vezes realizada
antes da morte desses grandes latifundiários. Se os futuros herdeiros não se
casassem com pessoas da mesma classe, inevitavelmente ocorreria um relativo
empobrecimento dessas pessoas. Embora não coubesse num trabalho de memórias, o
livro poderia ficar muito mais rico se pudesse explicar as estratégias
matrimoniais dos fazendeiros para seus filhos e suas filhas, como formas de
manter ou aumentar os seus patrimônios e reproduzir a sua classe social.
Ibarê Dantas pouco fala sobre os vaqueiros desses
fazendeiros. Em relação ao primeiro parente cujo percurso é reconstituído, o
autor diz que ele tinha uma escravaria e sobre isso mostra documentação. Na
parte do livro em que trata de seu pai, disse que teve pequenos problemas com
vaqueiros na Justiça do Trabalho. Vale lembrar que os vaqueiros somente neste
século XXI estão sendo reconhecidos como profissão, ou seja, quase quinhentos
anos depois de se firmarem como classe oposta àquela dos fazendeiros. Nada
também escreveu sobre a questão da reforma agrária tão importante que foi nos
anos 1950 e 1960 no Brasil. Mas menciona antes o problema da falta de braços
advindo com o fim da escravidão em Sergipe - um problema também abordado por
Josué M. dos Passos em seus dois livros sobre a história econômica de Sergipe.
A política dos fazendeiros é tratada nos três capítulos –
embora ele tente minimizar o papel de sua família na política sergipana. O
maior destaque dado por Ibarê Dantas é a respeito de seu pai, político ligado à
UDN. Faz, a respeito dele, uma longa prestação de contas documentada de
desempenho como prefeito da cidade que carrega o seu sobrenome, ou seja,
Riachão do Dantas. Por outro lado, Ibarê Dantas insiste sobre a atenção dada
por seus parentes fazendeiros à educação de seus filhos. Isso merece uma
reflexão alongada que não pode ser feita aqui. Penso que a educação superior
passa a ser central na socialização de pessoas de sua classe e de sua geração,
quando Sergipe entra num rápido processo de modernização nos anos 1950 e
1960,momento em que o diploma universitário adquire um alto valor numa
sociedade que vai se tornando muito competitiva. Membros de sua classe que não
souberam fazer essa transição, perderam o trem da história.
Aparentemente sem ter tido essa pretensão, Ibarê Dantas
escreveu um livro sobre as elites sociais sergipanas, colocando-se ao lado do
trabalho de Orlando Dantas (A vida patriarcal em Sergipe), que se refere às
elites ligadas às plantations de cana-de-açúcar, ao passo que o historiador
consagrado aborda as elites sociais criadoras de gado. Em minha opinião, Ibarê
Dantas memorialista aparece menos que o Ibare Dantas historiador. Notei muito
bem o memorialista quando ele descreve a sua casa ou as brincadeiras de
meninos. Esse aspecto da narrativa surge com força quando ele traça perfis de
pessoas queridas dele. Aí Ibarê Dantas, sempre reservado e contido, mostra
quais os valores que ele aprecia nas pessoas, logo os seus valores. Na
biografia de seu pai, ele se deixa aparecer várias vezes, torna-se personagem
da história familiar que conta, inclusive através de fotografias. Isso me fez
pensar: por que ele não escreve suas próprias memórias como indivíduo, como
professor, como pesquisador, como intelectual, etc., na primeira pessoa? Tenho
certeza que tem muito a dizer. A sua participação tímida na biografia de seu
pai foi um bom começo. Os seus amigos, leitores e admiradores já estão no
aguardo.
*Professor de Direito da UFS.
Texto reproduzido do blog: primeiramao.blog.br
Bom dia, faço anúncios de vendas de máquinas agrícolas, usadas👍
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