terça-feira, 25 de outubro de 2016

Antônio Carlos Viana dribla a morte

Foto: reproduzida do site: rascunho.com.br

Publicado originalmente no site Expressao Sergipana, em 08/10/2016.

Antônio Carlos Viana dribla a morte.

Sempre digo que escrever é como adiar a morte. Por isso escrevo um diário que já tem mais de 10 anos. É uma forma de não perder o compromisso com a vida e com a escrita

De Antonio Carlos Viana, podemos esperar o rigor dos contos e do olhar sobre os contos. O autor, que faleceu na última sexta-feira em decorrência de um câncer, destruiu todos os textos inacabados. A doença, antes eliminada, voltara há apenas 15 dias.

Podíamos esperar dele, também, um elevado nível de comprometimento com a literatura. Já professor universitário, um dia ele resolveu abandonar a profissão para vender cachorro-quente na fila do SUS, em Sergipe. E isso influenciou o modo como ele olhou essa parcela economicamente oprimida da população, que protagoniza boa parte de seus contos. Em entrevistas, ele advogou a importância de o escritor conhecer a teoria literária. Mas reconhecia que isso não é estritamente necessário para compor uma boa obra.

Um dos maiores contistas contemporâneos, ele dizia não escrever romances por pura impaciência. “A fatura dos contos é mais rápida”, dizia. Começou na carreira literária com Brincar de manja (1974). Seu último livro, Jeito de matar lagartas, é de 2015. Foi mestre (PUC-RS) e doutor (Universidade de Nice, França) em teoria literária.

No texto abaixo – feito especialmente para o livro Ficcionais 2 (Cepe Editora) -, vemos um Viana que se diz salvo pela literatura. Na vida, víamos um Viana realmente diferente; antes mais sério, depois do tratamento ele passou a tirar diversas selfies no Facebook, a ser mais expansivo. Falava em começar a malhar.

A morte, a escrita e essa abertura para vida são temas que transparecem no texto que segue, um bastidor de seu livro mais recente. É uma pequena homenagem do Suplemento Pernambuco a um autor de obra relevante no cenário editorial atual.

Também vemos como Viana, no texto, fala da influência de Kafka. “Mas o livro nada tem de kafkiano”. Porém, não conseguimos deixar de pensar no fato dele ter destruído seus trabalhos inacabados. Kafka morreu jovem. Tinha destruído parte significativa de sua obra. Instruiu seu amigo Max Brod a queimar o resto, no que foi desobedecido. Viana não quis correr esse risco.

Abrimos este texto afirmando que “podemos esperar o rigor” dos contos do escritor. “Podemos”, no presente, e não no passado. Viana permanece em sua obra, continua presente.
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Jeito de driblar a morte
por Antonio Carlos Viana

Bastidores de Jeito de matar lagartas (2015).

Tenho o hábito de escrever todas as manhãs, nem que seja uma linha, um parágrafo, que vou arquivando, sem grandes pretensões. Acredito que qualquer arte depende muito de nossa insistência, de nosso trabalho duro, mesmo que a tal da inspiração nunca apareça. A arte existe contra ela. É como a educação pela pedra, “frequentá-la”. Um dia sem escrever uma linha que seja me parece um dia perdido. Sempre digo que escrever é como adiar a morte. Por isso escrevo um diário que já tem mais de 10 anos. É uma forma de não perder o compromisso com a vida e com a escrita.

Assim, quando sinto que tenho um arquivo abarrotado de possíveis histórias, abro-o e vejo quais as que podem render mais. Assim nasceram todos os meus livros, seis até agora. Nunca me sentei com a ideia: “Vou escrever um livro a partir de hoje”. Isso me deixaria tenso, e jamais chegaria a coisa alguma. Preciso fazer de conta que estou apenas me divertindo. Se der certo, ótimo. Geralmente, tem dado.

Pego apenas um possível conto por dia e começo a trabalhá-lo até sentir que dominei aquela história nascida do acaso, que pode ter como embrião apenas uma frase, tal como aconteceu com o conto A Muralha da China, que abre o volume de Jeito de matar lagartas. Eu havia escrito apenas: “Nossa mãe tinha avisado: Façam de conta que Lelo ainda está vivo, conversem com dona Irene, fiquem como se ele fosse chegar e que vocês foram lá só pra brincar com ele”. Eu havia escrito isso fazia bem uns dois anos.

O restante da história era para mim um mistério, sempre é um mistério. A primeira frase de um conto precisa ter pegada, ficar retinindo por muito tempo em nossa cabeça. É só ter paciência, que o restante vem. Ao contrário do que diz Gabriel García Márquez, que, ao chegar à metade de um conto você já deve saber o final, meus contos nunca vêm inteiros na primeira escrita. A Muralha da China só foi se delineando muito lentamente. Eu não sabia a razão por que a mãe havia dito aquilo aos dois filhos. Quando descobri que era sobre a morte de Lelo e de seu pai, surgiu a ideia do quebra-cabeça, que seria contar a dona Irene a trágica notícia. Da ideia de quebra-cabeça me veio à lembrança aquele brinquedo de pequenas peças para montar. Podia ser um quadro, um monumento, uma paisagem… Pensei, então, numa muralha, pois o tempo todo os pais dos meninos precisarão transpor a muralha da alegria com que dona Irene os recebe. Eles precisarão transpô-la para dar a notícia da morte do filho e do marido num acidente de ônibus. Nada mais apropriado do que a Muralha da China. Ainda pensei em intitular o conto A mesquita azul, mas esta não tinha a mesma simbologia da muralha, que, no conto, também fica inacabada. Pensei até em dar ao livro o título de Muralha da China, mas poderiam pensar numa relação com Kafka, e o livro nada tem de kafkiano.

Quanto ao livro em si, Jeito de matar lagartas, nasceu de um modo diferente dos outros. Meu arquivo de contos já estava pedindo para ser explorado e eu não tinha nenhuma disposição para revê-los, pois vinha sendo acometido por uma estranha doença que os médicos não conseguiam diagnosticar. Para enfrentar a literatura é preciso ter boa saúde. Sentindo que ia entrar numa fase cujo final não se me descortinava nem um pouco tranquilo, eu tinha de enfrentar meus arquivos de histórias inacabadas. Tenho o péssimo habito de não gostar de reler o que escrevo. Foi quando meu primeiro leitor, o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, me pediu algo novo para ler, mas eu não tinha coragem de lhe mandar nada, porque achava que a qualidade do que eu tinha arquivado não me agradava. Não sei se essa insegurança é boa para o escritor ou para qualquer artista. Não consigo ter autodistanciamento para julgar a mim mesmo. Geralmente, minha crítica é muito negativa e paralisante. Já fiz até terapia para resolver isso. Resolveu em parte.

Àquela altura, eu não tinha nenhuma vontade de publicar mais nada, só pensava em ter um diagnóstico sobre minha estranha doença, que me fazia acordar todos os dias com uma enorme dor de cabeça e muita dor nas costas.

Enviei um conto para o Paulo, e sua resposta me surpreendeu. Ele disse que eu não precisava fazer mais nada, estava pronto. Me pediu mais outros e fui enviando os que achava que estavam mais ou menos acabados. Tenho outros três leitores de confiança além do Paulo, e, cada conto aprovado por este, eu enviava para eles. As aprovações foram se sucedendo e isso me animou a enviar cerca de 30 contos, dos quais 27 foram aprovados sem ressalvas. As ressalvas eu mesmo criava: a sonoridade das palavras, a procura da palavra exata, não só quanto ao sentido, mas também quanto ao som, a posição de cada parágrafo, a caracterização de cada personagem… Quem escreve sabe muito bem como isso nos atormenta. Sou um discípulo das teorias de Valéry. O escritor precisa sempre estar desconfiado das facilidades que muitas vezes o assaltam. Por isso, é bom ter sempre três ou quatro leitores exigentes, e muito sinceros, para não publicarmos tolices.

Quando estava com os contos escolhidos, parti para a confecção do livro. Na época, abril de 2014, eu morava em Curitiba. Apesar de doente, me tranquei 15 dias no flat onde morava e trabalhei cerca de oito, 10 horas por dia, fazendo os últimos ajustes. Só saía para almoçar e caminhar ao cair da noite. Os finais de alguns contos não me agradavam ainda, apesar da aprovação dos meus quatro críticos. No final das contas, somos, os escritores, nossos críticos mais ácidos. Quando o final de um conto não me agrada, acho que ele se destrói, por mais fascinante que seja a história contada. E havia uns três ou quatro finais que me deixavam intranquilo.

Em meados de maio, entrei em contato com Vanessa Ferrari, minha editora na Companhia das Letras, e enviei o livro para ela. Sempre fico apreensivo quando faço isso. Em poucos dias, recebi sua aprovação com algumas observações em relação a pequenas detalhes em alguns contos. Jeito de matar lagartas, título sugerido por Paulo Henriques, foi bem- recebido. Mesmo com a aprovação da editora, resolvi reler todo o livro e retrabalhar cada texto para sua edição definitiva, o que me tomou mais uma semana.

Sem esse trabalho, não há como fazer literatura ou qualquer outra arte. Essa fase final me deixa sempre supertenso, porque depois do livro lançado não há mais caminho de volta. Enviei a versão definitiva para Vanessa no final de maio, e ela me prometeu o livro para janeiro de 2015. Em outubro, fui Internado no hospital São Lucas, em Aracaju, quando recebi o diagnóstico fulminante de mieloma múltiplo. Daí em diante, eu só tinha um pensamento: “Não quero morrer antes de ver meu livro pronto”. A última revisão foi feita no quarto do hospital, meu filho André lendo conto por conto, para ver se eu ainda queria fazer alguma modificação.

Em fevereiro, recebi os primeiros exemplares de Jeito de matar lagartas, com uma capa que me tocou muito, num verde sombrio: a foto do sítio onde passei minha infância. Foi como se a espera desse livro tivesse contribuído para superar momentos tão cheios de dor e de uma rala esperança de sair daquele estado. Posso dizer que, no meu caso, a literatura ajudou a me salvar.

Texto reproduzido do site: expressaosergipana.com.br

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