Foto: reproduzida do site: rascunho.com.br
Publicado originalmente no site Expressao Sergipana, em
08/10/2016.
Antônio Carlos Viana dribla a morte.
Sempre digo que escrever é como adiar a morte. Por isso
escrevo um diário que já tem mais de 10 anos. É uma forma de não perder o
compromisso com a vida e com a escrita
De Antonio Carlos Viana, podemos esperar o rigor dos contos
e do olhar sobre os contos. O autor, que faleceu na última sexta-feira em
decorrência de um câncer, destruiu todos os textos inacabados. A doença, antes
eliminada, voltara há apenas 15 dias.
Podíamos esperar dele, também, um elevado nível de comprometimento
com a literatura. Já professor universitário, um dia ele resolveu abandonar a
profissão para vender cachorro-quente na fila do SUS, em Sergipe. E isso
influenciou o modo como ele olhou essa parcela economicamente oprimida da
população, que protagoniza boa parte de seus contos. Em entrevistas, ele
advogou a importância de o escritor conhecer a teoria literária. Mas reconhecia
que isso não é estritamente necessário para compor uma boa obra.
Um dos maiores contistas contemporâneos, ele dizia não
escrever romances por pura impaciência. “A fatura dos contos é mais rápida”,
dizia. Começou na carreira literária com Brincar de manja (1974). Seu último
livro, Jeito de matar lagartas, é de 2015. Foi mestre (PUC-RS) e doutor
(Universidade de Nice, França) em teoria literária.
No texto abaixo – feito especialmente para o livro
Ficcionais 2 (Cepe Editora) -, vemos um Viana que se diz salvo pela literatura.
Na vida, víamos um Viana realmente diferente; antes mais sério, depois do
tratamento ele passou a tirar diversas selfies no Facebook, a ser mais
expansivo. Falava em começar a malhar.
A morte, a escrita e essa abertura para vida são temas que
transparecem no texto que segue, um bastidor de seu livro mais recente. É uma
pequena homenagem do Suplemento Pernambuco a um autor de obra relevante no
cenário editorial atual.
Também vemos como Viana, no texto, fala da influência de
Kafka. “Mas o livro nada tem de kafkiano”. Porém, não conseguimos deixar de
pensar no fato dele ter destruído seus trabalhos inacabados. Kafka morreu
jovem. Tinha destruído parte significativa de sua obra. Instruiu seu amigo Max
Brod a queimar o resto, no que foi desobedecido. Viana não quis correr esse
risco.
Abrimos este texto afirmando que “podemos esperar o rigor”
dos contos do escritor. “Podemos”, no presente, e não no passado. Viana
permanece em sua obra, continua presente.
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Jeito de driblar a morte
por Antonio Carlos Viana
Bastidores de Jeito de matar lagartas (2015).
Tenho o hábito de escrever todas as manhãs, nem que seja uma
linha, um parágrafo, que vou arquivando, sem grandes pretensões. Acredito que
qualquer arte depende muito de nossa insistência, de nosso trabalho duro, mesmo
que a tal da inspiração nunca apareça. A arte existe contra ela. É como a
educação pela pedra, “frequentá-la”. Um dia sem escrever uma linha que seja me
parece um dia perdido. Sempre digo que escrever é como adiar a morte. Por isso
escrevo um diário que já tem mais de 10 anos. É uma forma de não perder o
compromisso com a vida e com a escrita.
Assim, quando sinto que tenho um arquivo abarrotado de
possíveis histórias, abro-o e vejo quais as que podem render mais. Assim
nasceram todos os meus livros, seis até agora. Nunca me sentei com a ideia:
“Vou escrever um livro a partir de hoje”. Isso me deixaria tenso, e jamais
chegaria a coisa alguma. Preciso fazer de conta que estou apenas me divertindo.
Se der certo, ótimo. Geralmente, tem dado.
Pego apenas um possível conto por dia e começo a trabalhá-lo
até sentir que dominei aquela história nascida do acaso, que pode ter como
embrião apenas uma frase, tal como aconteceu com o conto A Muralha da China,
que abre o volume de Jeito de matar lagartas. Eu havia escrito apenas: “Nossa
mãe tinha avisado: Façam de conta que Lelo ainda está vivo, conversem com dona
Irene, fiquem como se ele fosse chegar e que vocês foram lá só pra brincar com
ele”. Eu havia escrito isso fazia bem uns dois anos.
O restante da história era para mim um mistério, sempre é um
mistério. A primeira frase de um conto precisa ter pegada, ficar retinindo por
muito tempo em nossa cabeça. É só ter paciência, que o restante vem. Ao
contrário do que diz Gabriel García Márquez, que, ao chegar à metade de um
conto você já deve saber o final, meus contos nunca vêm inteiros na primeira
escrita. A Muralha da China só foi se delineando muito lentamente. Eu não sabia
a razão por que a mãe havia dito aquilo aos dois filhos. Quando descobri que
era sobre a morte de Lelo e de seu pai, surgiu a ideia do quebra-cabeça, que
seria contar a dona Irene a trágica notícia. Da ideia de quebra-cabeça me veio
à lembrança aquele brinquedo de pequenas peças para montar. Podia ser um
quadro, um monumento, uma paisagem… Pensei, então, numa muralha, pois o tempo
todo os pais dos meninos precisarão transpor a muralha da alegria com que dona
Irene os recebe. Eles precisarão transpô-la para dar a notícia da morte do
filho e do marido num acidente de ônibus. Nada mais apropriado do que a Muralha
da China. Ainda pensei em intitular o conto A mesquita azul, mas esta não tinha
a mesma simbologia da muralha, que, no conto, também fica inacabada. Pensei até
em dar ao livro o título de Muralha da China, mas poderiam pensar numa relação
com Kafka, e o livro nada tem de kafkiano.
Quanto ao livro em si, Jeito de matar lagartas, nasceu de um
modo diferente dos outros. Meu arquivo de contos já estava pedindo para ser
explorado e eu não tinha nenhuma disposição para revê-los, pois vinha sendo
acometido por uma estranha doença que os médicos não conseguiam diagnosticar.
Para enfrentar a literatura é preciso ter boa saúde. Sentindo que ia entrar
numa fase cujo final não se me descortinava nem um pouco tranquilo, eu tinha de
enfrentar meus arquivos de histórias inacabadas. Tenho o péssimo habito de não
gostar de reler o que escrevo. Foi quando meu primeiro leitor, o poeta e
tradutor Paulo Henriques Britto, me pediu algo novo para ler, mas eu não tinha
coragem de lhe mandar nada, porque achava que a qualidade do que eu tinha
arquivado não me agradava. Não sei se essa insegurança é boa para o escritor ou
para qualquer artista. Não consigo ter autodistanciamento para julgar a mim
mesmo. Geralmente, minha crítica é muito negativa e paralisante. Já fiz até
terapia para resolver isso. Resolveu em parte.
Àquela altura, eu não tinha nenhuma vontade de publicar mais
nada, só pensava em ter um diagnóstico sobre minha estranha doença, que me
fazia acordar todos os dias com uma enorme dor de cabeça e muita dor nas
costas.
Enviei um conto para o Paulo, e sua resposta me surpreendeu.
Ele disse que eu não precisava fazer mais nada, estava pronto. Me pediu mais
outros e fui enviando os que achava que estavam mais ou menos acabados. Tenho
outros três leitores de confiança além do Paulo, e, cada conto aprovado por
este, eu enviava para eles. As aprovações foram se sucedendo e isso me animou a
enviar cerca de 30 contos, dos quais 27 foram aprovados sem ressalvas. As
ressalvas eu mesmo criava: a sonoridade das palavras, a procura da palavra
exata, não só quanto ao sentido, mas também quanto ao som, a posição de cada
parágrafo, a caracterização de cada personagem… Quem escreve sabe muito bem
como isso nos atormenta. Sou um discípulo das teorias de Valéry. O escritor
precisa sempre estar desconfiado das facilidades que muitas vezes o assaltam.
Por isso, é bom ter sempre três ou quatro leitores exigentes, e muito sinceros,
para não publicarmos tolices.
Quando estava com os contos escolhidos, parti para a
confecção do livro. Na época, abril de 2014, eu morava em Curitiba. Apesar de
doente, me tranquei 15 dias no flat onde morava e trabalhei cerca de oito, 10
horas por dia, fazendo os últimos ajustes. Só saía para almoçar e caminhar ao
cair da noite. Os finais de alguns contos não me agradavam ainda, apesar da
aprovação dos meus quatro críticos. No final das contas, somos, os escritores,
nossos críticos mais ácidos. Quando o final de um conto não me agrada, acho que
ele se destrói, por mais fascinante que seja a história contada. E havia uns
três ou quatro finais que me deixavam intranquilo.
Em meados de maio, entrei em contato com Vanessa Ferrari,
minha editora na Companhia das Letras, e enviei o livro para ela. Sempre fico
apreensivo quando faço isso. Em poucos dias, recebi sua aprovação com algumas
observações em relação a pequenas detalhes em alguns contos. Jeito de matar
lagartas, título sugerido por Paulo Henriques, foi bem- recebido. Mesmo com a
aprovação da editora, resolvi reler todo o livro e retrabalhar cada texto para
sua edição definitiva, o que me tomou mais uma semana.
Sem esse trabalho, não há como fazer literatura ou qualquer
outra arte. Essa fase final me deixa sempre supertenso, porque depois do livro
lançado não há mais caminho de volta. Enviei a versão definitiva para Vanessa
no final de maio, e ela me prometeu o livro para janeiro de 2015. Em outubro,
fui Internado no hospital São Lucas, em Aracaju, quando recebi o diagnóstico
fulminante de mieloma múltiplo. Daí em diante, eu só tinha um pensamento: “Não
quero morrer antes de ver meu livro pronto”. A última revisão foi feita no
quarto do hospital, meu filho André lendo conto por conto, para ver se eu ainda
queria fazer alguma modificação.
Em fevereiro, recebi os primeiros exemplares de Jeito de
matar lagartas, com uma capa que me tocou muito, num verde sombrio: a foto do
sítio onde passei minha infância. Foi como se a espera desse livro tivesse
contribuído para superar momentos tão cheios de dor e de uma rala esperança de
sair daquele estado. Posso dizer que, no meu caso, a literatura ajudou a me salvar.
Texto reproduzido do site: expressaosergipana.com.br
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