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Publicado originalmente na Revista Literatura.
Entrevista com Antonio Carlos Viana.
"Fica difícil ser otimista num mundo em que não há
muitas saídas para quem está à margem de tudo, sobretudo da educação. Porque,
no nosso país, a educação que se dá ao pobre é tão ruim que no futuro não vai
lhe abrir porta alguma. Enquanto não repararem esse mal, continuarei
desacreditando no Brasil.".
Por Rafael Rodrigues
O contista sergipano Antonio Carlos Viana escreve sobre o
inevitável e o inusitado da vida. Mas também sobre o risível, o ridículo, o
irremediável. Cine Privê, seu terceiro livro de contos, é uma obra de rara
qualidade e simplicidade. Não obstante a diversidade e as virtudes da
literatura brasileira, poucos são os escritores que conseguem realizar obras
tão coesas e harmoniosas. E tão sóbrias. Há, nos contos de Cine privê, temas e
situações que os autores menos experientes adoram abordar em seus livros, como
sexo e violência gratuita. Viana, no entanto, os retrata por outros prismas:
sexo se transforma em sensualidade; violência em crueldade. O que falta à
maioria dos nossos escritores - seja pela pouca idade, pela inexperiência ou
mesmo pelo pouco talento - sobra em Antonio Carlos Viana: classe.
Apontado por muitos como um dos mestres do conto
contemporâneo, sendo suas obras anteriores, Aberto está o inferno e O meio do
mundo e outros contos, elogiadíssimas, Antonio Carlos Viana, apesar de criar
personagens pobres e sofridos, diz não ser um escritor engajado. Na entrevista
a seguir, realizada por e-mail, Antonio Carlos Viana fala sobre sua carreira,
sobre Cine Privê e sobre a literatura brasileira contemporânea.
CP literatura - Nascido em Aracaju, o senhor hoje é doutor
em Literatura Comparada pela Universidade de Nice, na França. Como isso
aconteceu? Poderia nos contar um pouco sobre sua trajetória?
Sempre gostei muito de estudar, sobretudo Teoria Literária,
mesmo antes de pensar em ser escritor. Acho que quem se dispõe a escrever
precisa entender bastante de teoria para saber por que caminhos está andando.
Eu me formei em letras em Aracaju, depois fiz mestrado em Teoria Literária na PUC
do Rio Grande do Sul, onde encontrei uma verdadeira mestra, a professora Regina
Zilberman. Foi ela que me incentivou a continuar escrevendo. Dois anos depois
de terminar o mestrado, eu nem pensava em fazer o doutorado, mas me foi
oferecida uma bolsa para fazê-lo, na França. Escolhi Nice porque conheci um
professor da universidade de lá que se colocou à minha disposição para ser meu
orientador. Além do mais, a cidade era muito convidativa. Não tive dúvida e me
mandei pra lá com família e tudo. Foi um tempo de muitas descobertas, inclusive
da obra de Paul Valéry, que eu jamais havia lido no Brasil. Foi sobre a poética
dele e de João Cabral que fiz minha tese.
CP literatura - O senhor já morou em Porto Alegre, Rio de
Janeiro e Paris, mas sua literatura está repleta de personagens interioranos.
Por que essa preferência?
Quando começo a escrever, não escolho o tema, nem
personagem, nem lugar. Deixo que as coisas venham da forma mais livre possível,
sem censura. Acredito que o mais forte mesmo para quem escreve é a memória, a
infância. Então meus contos falam de um lugar interiorano porque passei grande
parte de minha infância num lugar afastado de todo contato urbano, em que a luz
era de candeeiro, o contato com a terra era o principal. Convivi com pessoas
simples, trabalhadores rurais, seres sem futuro, como ainda acontece hoje, no
País. Muitos contos buscam nessa memória matéria para virem à luz, mas nada
planejado. Alguns dão certo, outros não. Mas também escrevo sobre personagens
urbanos, haja vista o do conto Cine Privê - mais cidade grande, impossível. O
ponto de contato maior entre esses dois mundos, o rural e o urbano, é o de
sempre; falo de seres à margem, os esquecidos pelo sistema.
CP literatura - Boa parte dos contos de Cine Privê tem
personagens que estão à margem da sociedade, quase todos passando por
dificuldades financeiras. Não se pode dizer que sua obra seja de denúncia, mas
muitos problemas são ali expostos. Dito isso, o senhor diria que é um escritor
engajado?
Nunca me senti um escritor engajado, nem escrevo com essa
pretensão. Escrever sobre personagens que estão à margem tem muito a ver com o
fato de eu ter vivido minha vida cercado por eles. Me lembro da miséria dos
trabalhadores, da falta de perspectivas, da degradação moral de suas famílias.
Eu era muito observador. Minha família também não era de grandes posses, tinha
um sitiozinho de onde tirava parte de sua subsistência. A gente escreve com
mais verdade sobre mundos que conhece... Claro que a imaginação também tem a
sua parte. Aproveito o que a memória me traz, mas, para chegar a ser
literatura, esse material precisa ser retrabalhado. Não existe nenhum conto meu
que seja autobiográfico, mas há personagens que nasceram de pessoas que
conheci, com as quais convivi. Aproveito pedaços de um, de outro, e monto a
personagem, que passa a ter vida ficcional, independente daquela que lhe deu
origem. Algumas situações também aconteceram, mas não daquele jeito, como
conto.
CP literatura - O que o senhor acha da expressão
"literatura regionalista"? Não seria um termo mesquinho, visto que os
conflitos humanos ocorrem em qualquer lugar do mundo?
Essa me parece uma marca com que todo escritor do Nordeste
vai ter de conviver ainda por muito tempo. Sempre digo que aquela
"literatura regionalista" a que se referem não existe mais, a do
pitoresco, dos tipinhos engraçados que falam errado. Quem ainda a faz não
encontra lugar na literatura. Não estou dizendo que esses tipos desapareceram,
mas, ao colocá-los numa obra de ficção, é preciso dar-lhes outra dimensão,
torná-los mais complexos, em situações que os revelem como seres perdidos de si
mesmos. Acho que nenhum escritor pode fugir do regional e sua dimensão de
humanidade. Se olharmos bem, todo escritor fala do que está a sua volta. Calha
de eu estar no Nordeste, e é disso que posso falar com mais verdade. A gente
parte do local, mas precisa ampliá-lo até alcançar ressonâncias maiores. Se o
escritor não faz isso, falha.
CP literatura - Em algumas histórias os personagens
conseguem ver algo de bom mesmo nas tragédias, nas situações difíceis. É a
isso, essas pequenas fagulhas de esperança, que devemos buscar? Seus contos
são, no fundo, otimistas? O senhor é um otimista?
Eu sou um pessimista até o último grau. Se algumas
personagens, como o menino do conto Santana Quemo-Quemo, que abre Cine Privê,
descobre algo de bom no meio da desgraça, não significa para mim a esperança,
mas um elemento de humor - humor ácido, é verdade - que faz ainda maior o
drama. Fica difícil ser otimista num mundo em que não há muitas saídas para
quem está à margem de tudo, sobretudo da educação. Porque no nosso País, a
educação que se dá ao pobre é tão ruim que no futuro não vai lhe abrir porta alguma.
Enquanto não repararem esse mal, continuarei desacreditando no Brasil.
CP literatura - O conto é um gênero ainda subestimado? O
senhor pensa em escrever algo maior, como uma novela ou mesmo o romance?
O conto passou um tempo meio esquecido das editoras, mas
hoje vejo que há uma aceitação maior. Confesso que nunca entendi por que acham
que o romance dá mais trabalho que o conto, porque o trabalho de um é tão árduo
quanto o do outro. Um bom conto pode levar anos para ser feito. É que o romance
precisa de fôlego, isso é que é decisivo. Fôlego e paciência. O conto já exige
um poder de síntese, que também não é fácil. Poder de síntese e capacidade de
surpreender o leitor. Eu não tenho vontade de escrever algo mais longo, não
tenho o fôlego necessário e também sou muito impaciente. Se escrever um conto
já me deixa sem dormir direito, imagine escrever um romance, com os mil
caminhos que ele exige.
*Rafael Rodrigues (rafaelnikov@gmail.com) é
editor-assistente e colunista do site Digestivo Cultural, além de colaborador
de outros veículos. Mantém os blogs Entretantos (www.entretantos.com.br) e O
Leitor (www.oleitor.blog.br). Mora em Feira de Santana, Bahia.
Texto e imagem reproduzidos do site: literatura.uol.com.br
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