terça-feira, 26 de setembro de 2017

“Eu me doo, você se dói, nós nos doemos”

Foto: Renata Lohmann/Divulgação

Publicado originalmente no site do Jornal da Cidade, em 25/09/2017 

“Eu me doo, você se dói, nós nos doemos”

Com empatia e uma sensibilidade a cada conto escrito, Michel de Oliveira acaba de lançar o primeiro livro, intitulado ‘Cólicas, câimbras e outras dores’.

Por: Gilmara Costa/ Equipe JC

É no encontro com a dor do outro, a qual ele não consegue mensurar, mas escreve em vãos brancos de papel o que seria aquele incômodo, sangrento por vezes, escondido em outros. Com empatia e uma sensibilidade a cada conto escrito, Michel de Oliveira, cria sergipana que hoje reside em Porto Alegre (RS), onde faz Doutorado, acaba de lançar o primeiro livro. Intitulado ‘Cólicas, câimbras e outras dores’, a publicação compartilha ansiedades, medos, angústias nossas de cada dia. É sobre elas, o processo de criação, a revelação do ‘eu’ e de ‘tus’, que o JORNAL DA CIDADE conversou com o jovem autor. Boa leitura e dores compartilhadas!

JORNAL DA CIDADE - Que dores são essas acumuladas em ‘Cólicas, câimbras e outras dores’?

MICHEL DE OLIVEIRA - Acredito que sejam dores silenciadas, das angústias que não se falam, de cenas tão ordinárias que são ignoradas. Muitas das histórias giram em torno de um cotidiano nada espetacular, do dia a dia que pode ser enfadonho, mas também cheio de experiências que são extremamente significativas para a vida.

JC - Foi doloroso o processo de imersão, mais popularmente falando ‘meter dedo na ferida’, e fazer escrever essas linhas de ansiedade, angústias, agonia?

MO - O processo foi mais incômodo que doloroso, pois não posso dizer que são dores minhas, isso seria muito cinismo. Melhor considerar que foi uma tentativa de me aproximar das dores alheias, em um exercício imaginativo e incompleto de entender as aflições do outro. É como se eu olhasse a vida de alguém pela janela e me deixasse me afetar, sem fazer julgamentos. Ao propor o tema das dores como fio condutor da obra, acabei me deparando com as muitas dores silenciadas das mulheres, por isso maior parte das personagens são femininas, o que me obriga a tentar compreender além de mim, de ser homem em um mundo feito por e para homens. Nesse sentido, houve um choque pessoal ao contar essas histórias, pois por mais que racionalmente discutamos a perversa condição da mulher em nossa sociedade, tudo não passa de discurso. Então, me colocar diante dessas dores fêmeas, ainda que como exercício de imaginação, me fez repensar muitas coisas. E se na ficção isso já é incômodo, na vivência de carne e osso, para a maioria das mulheres, é ainda pior.

JC - É você autor revelado ou escritos de ‘um segundo tu’? 

MO - Talvez o autor se revele quando se esconda e se mostre quando tenta se esconder. Mas mais do que projeções do meu próprio eu na história, creio que tem muito da minha visão de mundo, ou do que me incomoda por não ser compreensível, ou que me choca por ser brutal, ou que me resigna a aceitar a vida como é, com tantas incoerências. Então além do “eu” e do “tu”, que sempre se fazem presentes, tem uma busca pelo “nós”, e as dores foram o caminho para encontrar isso, o que é comum e que pode provocar alguma aproximação. Tanto que um dos personagens questiona: “Quem te dói?”. Eu me doo, você se dói, nós nos doemos, e por mais que as dores sejam sempre pessoais, o fato de doer nos une. E talvez parar de negar que há, sim, muitos momentos doloridos na vida, nos ajude a ter alegrias mais sinceras e risos menos forçados.

JC - Há quanto tempo latejavam essas dores e que agora chegam compartilhadas?

MO - O primeiro conto foi escrito em 2011, quando eu ainda trabalhava como repórter, estando sujeito às mais variadas histórias, de pessoas que comiam do lixo à mãe que presenciou o abuso da filha e teve que ficar calada escondida no banheiro para que ambas não fossem mortas. No começo, eram apenas rabiscos, que eu colocava no papel em noites de insônia, para tentar dormir quando alguma ideia ficava ecoando na cabeça. Depois decidi levar a brincadeira mais a sério e passei a organizar os contos que acabaram sendo materializados no livro. Isso foi no começo de 2015, depois que terminei o mestrado e fiquei com tempo livre. Quando consegui organizá-los, inscrevi o original em concursos e recebi o convite das editoras da Oito e Meio para publicá-lo.

JC - O livro foi uma forma de neutralizá-las?

MO - Além de ajudar a neutralizar as dores externas que se juntavam às minhas próprias dores, foi uma tentativa de expor isso de alguma forma, pois a ficção tem a estranha potência de ajudar a repensar nossa forma de estar no mundo. Talvez gritar tantas histórias incômodas seja uma forma de, paradoxalmente, tentar encontrar outras formas de existir que sejam menos dolorosas.

JC - Ao mesmo tempo, o lançamento é mais uma dor desconhecida? Tipo, uma dor de parto?

MO - Sim, o lançamento é um grande incômodo. É um processo que me deixa vulnerável, pois ao mesmo tempo em que quero expor isso para o mundo, tem a insegurança de apresentar algo seu para o julgamento público. Sempre brinco que o lançamento é um parto, mas tenho consciência que é uma metáfora cretina da minha parte. Mas se nascer alguma coisa desse processo e a cria for muito mal-educada, a culpa não é minha, ela tem vida própria.

JC - Conquistar leitores sempre é um desejo, meta como escritor ou a publicação é mais uma realização meramente pessoal?

MO - Aparentemente todo escritor oscila entre a exibição narcísica e certo desejo de encontrar alguma acolhida e diálogo com o outro. São forças bem contraditórias que motivam o processo de escrita e, mais ainda, de juntar isso num livro e publicar. Se fosse só uma realização pessoal, bastava imprimir e ficar contemplando a própria obra, ou escrever e guardar para mim mesmo, como um diário. Aí é onde entra o desejo de acolhida, de querer que essas histórias não morram em si, que também impactem o outro e faça nascer algum diálogo. O livro não se basta, a história não está nas letras, mas no fato de que alguém escreveu e outro alguém vai ler. É no encontro dessas duas pontas que a obra nasce, por esse motivo que os leitores são tão importantes quanto o autor. E o autor sempre espera que sua obra seja muito lida, pois também é um exibicionista.

JC - Depois de Porto Alegre (RS), pretende fazer o lançamento em outras cidades, especialmente em Sergipe?

MO - O lançamento em Porto Alegre aconteceu pela precariedade financeira do autor, para usar um eufemismo. E, por sorte, aqui encontrei amigos que apoiaram essa insanidade de me aventurar pela literatura. Mas sou do calor e minha fala é cantada, sou enraizado no sertão e criado com cuscuz, então espero, muito em breve, poder voltar para casa, e não só por causa do livro, mas para matar a saudade do meu povo e comer muito acarajé e tapioca.

JC - Há mais dores por vir?

MO - Sempre há dores por vir, inclusive no que se trata de literatura, pois publicar um livro não é nada fácil em um país com índices tão baixos de leitura. Mas há também muitas alegrias, um tanto de frustrações, ilusões e esperanças, pois tudo isso faz parte da vida. Tem outras histórias em andamento, muitos contos, que é meu principal gênero narrativo e, quem sabe, um romance, por que não?

Texto e imagem reproduzidos do site: jornaldacidade.net

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