Na foto: Junot Silveira e Jenner Augusto entre amigos,
em São Cristóvão, anos 1930.
Publicado no Blog de Thiago Fragata, em 12 de novembro de
2014.
As Memórias de Junot Silveira – I*
Por Thiago Fragata**
À Jenner Augusto (11/11/1924 – 11/11/2014)
Os relatos memorialísticos traçam grandes painéis da realidade.
Estes retratos são obras de artistas e/ou historiadores, uns mais realistas,
outros mais poéticos, cronistas do passado. Recentemente, recebemos duas
excelentes produções biográficas, genealógicas, de marcante rigor
historiográfico. A primeira foi “Memórias de famílias: o percurso de quatro
fazendeiros”, de Ibarê Dantas; a segunda, “Trilhando Memórias”, de Ana Maria
Fonseca Medina. Por demais resenhadas, devo apenas reputar o nível e o vigor do
gênero literário em terras sergipanas. Nem sempre as memórias de um contexto
historico-geográfico são enfeixadas em livro e chegam ao público leitor. Se o
relato memorialístico que Serafim Santiago escreveu para os seus netos em 1920
ganhou o formato livro em 2009 foi graças aos esforços da Universidade Federal
de Sergipe e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, em razão do
consenso destes centros de difusão do conhecimento. O Anuário Christovense
traça um panorama geral dos fatos e práticas civis e religiosas de São
Cristóvão na segunda metade do século XIX e início do XX, quando o autor
comemora a chegada do progresso com a inauguração da Fábrica de Tecidos Sam
Christovam em 1914. (1) No presente artigo revelarei a São Cristóvão na década
de 1930 através das lembranças de um cronista, Junot José da Siveira
(1923/2003).
Junot Silveira era irmão de Jenner Augusto, destacado
artista plástico, e teve uma marcante atuação no jornalismo baiano apesar de
ter ensaiado seus primeiros voos em Sergipe, assim como o irmão. Foi editor do
jornal A Tarde, de Salvador, Bahia, por mais de 40 anos (1958, meados da década
de 1990). Na sua crônica registrou a nostalgia dos tempos de infância em São
Cristóvão enquanto pauta do gênero literário que dominou magistralmente. “Num
sentido, genérico, usa-se a palavra crônica para indicar, até hoje, o registro
da feição de uma comunidade e de uma época, as memórias de um passado que se
quer fixar”. (2) Apesar do dissenso quanto a classificação da crônica, se é
paraliteratura, literatura ou história, tenho o cronista como um historiador
dos costumes ou historiador do cotidiano.(3)
Folheei 20 crônicas de Junot Silveira produzidas entre 1968
e 1994 e confesso minha admiração e descoberta do seu potencial memorialístico;
“algumas de suas crônicas dominicais – conforme asseverou Mario Cabral – são
antológicas”. (4) Da minha parte, não ousarei resenhar ou mesmo resumir seus
escritos a respeito da sua encantada infância. Por isso deixarei seu texto
“Ontem e Hoje”, publicado em 1988, substituir este elogio. Antes é importante
frisar que os irmãos Jenner Augusto e Junot Silveira chegaram em São Cristóvão
em 1930. Sua mãe, Maria Catarina Mendes da Silveira, professora, foi
transferida para o Grupo Escolar Vigário Barroso, situado na atual Praça da
Matriz. A residência simples em que moraram por 4 anos era no fundo da Igreja
do Amparo dos Homens Pardos. (5)
ONTEM E HOJE - Vendo tantos carros manobrar no pátio do
estacionamento eu me lembrei dos tempos de criança. Da época em que vivi em São
Cristóvão com seus casarões coloniais, os seus conventos, os seus frades e suas
beatas, as procissões desfilando pelas ruas, a velha fábrica de tecidos que
funcionava na Cidade Baixa.
Era para essa fábrica que passavam, madrugada ainda, dezenas
e dezenas de operários pela nossa porta. Eram homens e mulheres que acordavam
cedo e calçavam tamancos, pisando em passos rápidos o chão de cimento das
calçadas ou o barro das ruas. Acordavam cedinho, com o amanhecer, para se
dirigirem ao trabalho, que não ficava perto da residência de todos. À época não
havia transporte coletivo; o jeito era utilizar as pernas, caminhar muito mais
de um quilômetro para lá e muito mais de um outro quilômetro para voltar. Iam
limpos para o trabalho, limpos como a manhã que respiravam e quando retornavam
estavam suarentos, com os corpos visgando e com vestígios de algodão. Traziam
do serviço essa lembrança diariamente, e mais o cansaço de lidar com os teares.
Nas tardes de domingo tinham como lazer o futebol, o quadro
da própria fábrica, o União Têxtil, se a memória não me trai, fazendo ótimas
exibições frente a representação de outras cidades, inclusive Aracaju. No União
Têxtil havia grandes valores, como Zeca Trincheira, um zagueiro pesado e forte
e o hábil centroavante Zeca Tenisson. O Zeca Tenisson jogou futebol por mais de
25 anos seguidos, sempre com muita garra, muito empenho e muito brilhantismo. E
também com muita discussão em campo, que não era homem para levar desaforo para
casa. Por várias e várias vezes seguidas comandou a seleção sergipana que, se
nem sempre teve melhor atuação, não foi por sua culpa.
O Zeca Tenisson jogou futebol durante tanto tempo, que eu
devia ter uns cinco anos de idade quando ele já era craque do União Têxtil e,
já adolescente, quando contava 17 anos, eu jogava ao seu lado em Laranjeiras e
ele me transmitia alguns de seus truques e um pouco da sua experiência e da sua
habilidade. Tivesse ele atuado em outros meios, em um centro como o Rio de
Janeiro ou São Paulo, teria gozado de fama nacional. Fama justa, merecida e não
fabricada como é comum acontecer hoje em dia.
O campo do União Têxtil, em São Cristóvão, era aberto; o da
Associação Atlética, do Lagarto, colocava uma empanada nos dias de grandes
eventos, o de Laranjeiras tinha uma cerca de bambus. No gramado dos três
conheci bons atletas, mas nenhum deles se igualava ao Zeca Tenisson. Mas dele
tenho também a lembrança de bom amigo que me levava, quando criança e ele
adulto, a passear na São Cristóvão, inclusive nos dias de festas religiosas.
Nos dias em que a cidade se enchia de visitantes. Nos dias em que chegavam os
romeiros de várias partes, em caminhões, que então ainda não eram chamados de
paus-de-arara. Ou em trens especiais. E as pessoas de maiores posses, altos
comerciantes e senhores de engenho, que se transportavam de automóvel.
Esses automóveis eram, para mim, um deslumbramento. Nunca
tive, sequer, um velocípede. O carro em que brincava era de madeira, das quatro
rodas ao volante, feito por mim e os amigos. Daí o encantamento pelos veículos
que chegavam de fora, especialmente de Aracaju. Pela manhã quase sempre ficavam
postados na Praça de São Francisco e à tarde, lado a lado, na Praça da Matriz.
Alguns motoristas, mais compreensivos e tolerantes, permitiam que eu sentasse
no coxim, pegasse no volante, tocasse na alavanca do câmbio. Tudo isso eu fazia
com o maior contentamento da vida. Com a mesma sofreguidão com que Thiago,
sentado ao meu colo, mexe no painel do carro, acende e apaga as luzes do farol,
vai-se familiarizando, precocemente, com a máquina que eu vejo manobrar no
pátio do estacionamento e me traz lembranças de um passado que vai longe, mas
sempre presente em minha vida sentimental. (6) Continua.
*Artigo publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 12 de
novembro de 2014, p. B-6.
** Thiago Fragata é Especialista em História Cultural (UFS),
sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), diretor do Museu
Histórico de Sergipe (MHS/SECULT), membro do GPCIR/CNPQ. Email:
thiagofragata@gmail.com
NOTAS DA PESQUISA
1 DANTAS, Ibaré. Memórias de família: o percurso de quatro
fazendeiros. Aracaju: Criação, 2013; MEDINA, Ana Maria Fonseca. Trilhando
memórias. Aracaju: Sercore, 2013; SANTIAGO, Serafim. Annuario Christovense ou
cidade de São Christovão. São Cristóvão: Editora da UFS, 2009.
2 BENDER, Flora et all. Crônica: história, teoria e prática.
São Paulo: Editora Scipione, 1993, p. 14.
3 EWALD, Ariane P. et all. Crônicas folhetinescas:
subjetividade, modernidade e circulação da notícia. In: NEVES, Lúcia Maria et.
All. (org.) História e imprensa: representações culturais e práticas de poder.
Rio de Janeiro: DP&A, FAPERJ, 2006, p. 242; BENDER, obra citada, p. 14-15.
4 CABRAL, Mario. Jornal da Noite (críticas). Salvador:
Editora Artes Gráficas, 1997, p. 307.
5 PONTUAL, Roberto. Jenner e a Arte Moderna na Bahia. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, 41. Imagem foi retirada desta obra.
6 SILVEIRA, Junot. Ontem e Hoje. A Tarde. Salvador, 11
/9/1988.
Texto e imagem reproduzidos do blog:
thiagofragata.blogspot.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário