‘Ideias em movimento’: José Augusto Garcez e a reinvenção do
folclore no Museu Sergipano de Arte e Tradição (1948).
RESUMO
Este artigo analisa a trajetória do colecionador sergipano
José Augusto Garcez (1918-1992) e seus trânsitos na reinvenção do folclore, por
meio de exposições museológicas, com destaque para a criação do Museu Sergipano
de Arte e Tradição (1948), em Aracaju, Sergipe. O interesse é compreender as
transformações do folclore, especialmente em Sergipe, por meio da análise da
constituição de um campo de produção simbólico, dos trânsitos intelectuais e
das estratégias dos agentes responsáveis pela mobilização da crença em
determinadas invenções do ‘popular’, traduzidas em exposições museológicas.
Sustentado no referencial teórico-metodológico de Pierre Bourdieu e na análise
de um conjunto de fontes inéditas, o artigo contribui para a visualização das
táticas utilizadas para a criação de museus dedicados ao folclore no Nordeste
do país, no início do século XX, e do modo como esses espaços auxiliaram na mobilização
e na consolidação de determinados projetos intelectuais.
Falar de José Augusto Garcez como personagem que atuou em
diferentes campos, homem das letras, colecionador, criador de um museu,
mobilizando a partir de suas ações, práticas relacionais em diferentes espaços,
é narrar a sua trajetória enquanto agente socialmente instituído,
problematizando aquilo que Bourdieu (2007) denominou como ‘ilusão biográfica’.
Sem dúvida, o caráter autobiográfico presente em diversas obras, mas
especificamente em seu livro “Folclore: realidade e destino dos museus”
(Garcez, 1958), constitui-se, “[...] pelo menos em parte, na preocupação de dar
sentido, tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e
prospectiva” (Bourdieu, 2007, p. 184), na disputa pelo monopólio de
legitimidade dentro dos espaços possíveis. Assim, partindo do nome próprio como
objeto de análise, podemos perceber as sucessivas movimentações que José
Augusto Garcez mobilizou enquanto produtor e produto de uma construção social,
uma vez que, frente à classificação de objetos coletados e preservados em seu
empreendimento cultural, o Museu Sergipano de Arte e Tradição contribuiu para a
fabricação de tradições da cultura local.
A vida social é composta por objetos que circundam os
agentes, proporcionando significados distintos, temporalidades, trajetórias
individuais ou coletivas que reverberam em suas práticas culturais cotidianas,
a partir “[...] das categorias culturais ou sistemas classificatórios dentro
dos quais situamos, separamos, dividimos e hierarquizamos” (Gonçalves, 2007, p.
14). São suportes de memórias que, uma vez acionados, revelam subjetividades
perante os embaraços de um macrocircuito de classificações, que, dependendo do
seu contexto sociocultural, carregam diferentes marcas do pensamento de
determinada época.
No final do século XIX e início do século XX, muitos destes
objetos, segundo Gonçalves (2007), foram classificados como etnográficos. Logo,
corroborando o autor, ao sinalizar que nem toda coleção demarcada como
etnográfica “[...] era desenvolvida por antropólogos profissionais, mas por
viajantes e missionários” (Gonçalves, 2007, p. 16) e, ainda mais, que muitas
dessas coleções não eram frutos de análises epistemológicas sobre entendimento
do ‘outro’, destacamos as ações desenvolvidas pelo sergipano José Augusto
Garcez e o seu Museu Sergipano de Arte e Tradição. Não sendo um antropólogo de
formação, fez-se viajante, um estudioso das coisas de Sergipe, registrando e
preservando objetos que falariam a ‘alma dessa gente’ aos ‘pensadores do nosso
povo’. Assim, acreditamos que os museus e as suas coleções são espaços
privilegiados para a fabricação de práticas, discursos e crenças que dinamizam
a memória e o esquecimento, tornando-se um dos recursos utilizados para a
construção de determinadas leituras sobre a identidade nacional e local.
No Brasil, no início do século XX, é possível mapear
discussões acerca da valorização de elementos que representariam o universo
‘popular’ brasileiro, como instrumentos de construção e de consolidação de uma
possível imagem de nação. A partir da década de 1930, o país viveu algumas
iniciativas políticas e culturais que demandaram, para além de outras
realizações, ações de preservação de bens que encenariam – a partir de diversos
campos, museus, literatura, artes plásticas etc. – uma possível imagem de
Brasil. Segundo Antônio Albino Canelas Rubim, essas iniciativas ocorrem quando
“As classes médias e o proletariado aparecem na cena política” (Rubim, 2007, p.
14), contribuindo para a atuação de uma emergente burguesia dentro dos espaços
políticos culturais.
A institucionalização do patrimônio cultural no Brasil
ocorre a partir de 1936, em pleno Estado Novo, com a criação do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Sob a atuação de Rodrigo
Melo Franco de Andrade como dirigente do órgão, a partir do Decreto-Lei nº 25,
de 1937, iniciou-se a construção de um conjunto de narrativas sobre os bens
culturais brasileiros, entendido como patrimônio histórico e artístico
nacional. Como assinalado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, embasado por uma
perspectiva de Mário de Andrade acerca da noção de patrimônio, promove-se o
“[...] conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação
seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da
história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico” (Andrade, R., 1987, p. 51).
As ações do SPHAN foram marcadas pela identificação e
preservação dos bens com referências a uma herança colonizadora, fato que
resultou em críticas sobre a representatividade dos bens e que contribuiu para
a uma não “[...] interação com as comunidades e públicos interessados nos
sítios patrimoniais preservados, [...] [impedindo] o SPHAN de acompanhar os
desenvolvimentos contemporâneos na área de patrimônio [...]” (Rubim, 2007, p.
17-18). Este pensamento foi reforçado por Maria Cecília Londres Fonseca, quando
analisou a política federal de preservação ao patrimônio cultural e sublinhou
uma composição do patrimônio “[...] limitada a uma vertente formadora da
nacionalidade, a luso-brasileira, [elegendo] determinados períodos históricos,
elitista na seleção e no trato dos bens culturais” (Fonseca, 2009, p. 143).
Em meio a essas tensões, torna-se importante destacar a
atuação das Campanhas de Defesa do Folclore Brasileiro que, paralelamente às
iniciativas institucionalizadas pelo SPHAN no tocante à busca pela preservação
das manifestações culturais e da identidade nacional, estimulou o surgimento de
uma rede de intelectuais folcloristas. Essa rede de intelectuais pensava suas
representações culturais a partir de uma determinada esfera social – ‘o povo’
–, que, segundo o antropólogo Vilhena (1997), é denominada de movimento
folclorista.
A mobilização dos folcloristas, em 1947, fez surgir a
Comissão Nacional de Folclore, que resultou na Campanha de Defesa do Folclore
Brasileiro. Os pesquisadores dessa temática passaram a tratar o conceito de
folclore como equivalente ao de cultura popular. Desse modo, as ações desses
estudiosos foram orientadas na tentativa de transformar o folclore em uma
disciplina científica autônoma, com campo de investigação e métodos próprios,
uma vez que seus trabalhos, até então, se restringiam a um caráter descritivo
dos registros coletados:
De 1947 aos dias atuais, outros capítulos dessa história
foram escritos. Constituíram-se coleções públicas e privadas, realizaram-se
exposições, foram editados livros, filmes e vídeos voltados para a análise e
divulgação das expressões de uma arte oriunda de indivíduos pertencentes às
camadas populares ou resultante da ação de comunidades organizadas em torno da
produção de objetos da cultura material. Nesse período observa-se também a
criação de instituições museológicas nos país, cuja finalidade precípua inclui
a coleta, a guarda e a exposição de objetos de origem popular. Tais
instituições surgem no contexto de implantação de mecanismos de proteção ao
folclore nacional, a partir da iniciativa de uma rede organizada de
intelectuais convencionalmente nomeada Movimento Folclórico Brasileiro.
(Lima; Ferreira, 1999, p. 102).
Em 1951, durante o I Congresso Brasileiro de Folclore,
ocorrido no Rio de Janeiro, os folcloristas promoveram debates acerca das
características do folclore e redigiram um documento, a “Carta do Folclore
Brasileiro”, como forma de estabelecer as diretrizes que reconheciam o estudo
deste objeto como parte integrante de outras áreas do saber, como a antropologia
cultural e o seu “[...] estudo da vida popular em sua plenitude quer no aspecto
material, quer no espiritual, [...] as maneiras de pensar, sentir e agir de um
povo, preservadas pela tradição popular” (Carta..., 1952-1955). Portanto, é
importante salientar que, segundo Elisabeth Travassos, o movimento folclorista,
nesse momento, distancia-se das posições clássicas quanto à noção de
antiguidade e oralidade, que impregnava os estudos folcloristas no início do
século XIX. Para a autora, “Sob a égide dos relatos de fundação do Brasil a
partir dos três povos formadores, o tema privilegiado pelos estudos do folclore
passou da poesia popular à música, e em seguida aos ‘folguedos’” (Travassos,
1998, p. 187).
Durante essa Campanha, inúmeras instituições especializadas
em folclore, a exemplo de museus e órgãos do governo estadual e federal,
fizeram-se presentes como espaço político legitimador. A identificação de
artefatos classificados como ‘folclore’, ‘cultura popular’, ‘arte popular’,
começa a emergir dentro dos cenários museológicos como forma de materializar um
discurso que encenaria a ‘cultura do povo’, ou seja, buscava-se aqueles que
estavam à margem da sociedade, com seus costumes, hábitos e criações artísticas
sendo classificados como elementos autênticos de uma brasilidade.
No Brasil, a representação da nacionalidade em museus é
investigada, por exemplo, tomando-se como referência os intelectuais Gustavo
Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, conforme o trabalho de Chagas (2009),
e suas relações com a criação do Museu Histórico Nacional, do Museu do Homem do
Nordeste e do Museu do Índio, respectivamente. A partir das problematizações em
torno da identificação dessas instituições, bem como da abordagem que o autor
fez acerca do nacional nos museus brasileiros, fica evidente que o tratamento
dado a essas coleções traduz uma representação (de) sobre o outro, um olhar a
partir de seu ponto de vista cultural. Obviamente, o papel dos museus como
suportes na narrativa sobre a nação remonta ao século XIX, em uma perspectiva
marcadamente científica, a exemplo da configuração do Museu Nacional, do Museu
Paranaense, do Museu Paraense Emílio Goeldi e do Museu Paulista (Schwarcz,
1993; Lopes, 1997).
Atrelados a uma ideia de produção artesanal, ao longo do
século XX, diversos museus identificaram os artefatos em suas exposições por
meio de uma narrativa em que o cotidiano do ‘homem comum’ fosse ali
representado. Evidenciavam objetos que, fabricados em localidades longe dos
grandes centros de influência cultural, dialogavam com a população rural ou de
cidades do interior, tornando-se o assento de uma ‘cultura legítima’ de
‘representação do povo’. Esses artefatos eram feitos de matérias-primas
diversas, como couro, palha, lataria, madeira, barro, começando a compor o imaginário
acerca de sertão, de Nordeste, formando coleções particulares, fruto da ação de
estudiosos que tratavam sobre a ‘cultura do povo’. Nesse contexto, no Brasil,
começaram a surgir os museus de caráter etnográfico, museus regionais, museus
de folclore e museus de arte popular.
Por esse motivo, intitulamos este artigo de “ideias em
movimento”, nos termos apresentados por Alonso (2002), visando realizar uma
leitura sociológica em torno de conjunturas, confluências e debates que
envolveram as interconexões entre os intelectuais dos campos dos museus e do
folclore em Sergipe. Isso ganha centralidade quando percebemos, em Sergipe, nas
primeiras décadas do século XX, iniciativas que apresentavam a cultura local
como forma de mediar, a partir de artefatos, arquivos bibliográficos,
oralidade, noticiários, uma campanha do que seria a cultura de Sergipe.
Acreditamos que, a partir do Museu Sergipano de Arte e Tradição, criado pelo
colecionador folclorista José Augusto Garcez, em 1948, é possível entender as
estratégias de fabricação de um ‘folclore sergipano’ junto a outros
intelectuais e instituições que, integrados a esse projeto, auxiliaram na
consolidação do campo museológico em Sergipe.
Nesse período, o estado de Sergipe possuía dois espaços
museológicos que respondiam como lugar de preservação e salvaguarda da memória
local: o Museu do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) (hoje,
Museu Galdino Bicho, pertencente à mesma instituição), em Aracaju, e o Museu
Horácio Hora, em Laranjeiras. Em seu livro autobiográfico “Folclore: realidade
e destinos do museu”, Garcez (1958) promove uma crítica no tocante à forma como
esses espaços desenvolviam suas atividades culturais no cenário museológico
sergipano. Para o autor, ocupando duas áreas do prédio do IHGSE, o museu estava
dividido em dois espaços, o térreo e o primeiro andar:
As peças existentes no Museu incorporado ao Instituto
Histórico e Geográfico de Sergipe abrangem duas áreas, sendo uma sala no térreo
e um salão no segundo. A primeira e principal sala está situada no térreo da
aludida instalação, estando regularmente com os objetos arrumados não atendendo
ainda as regras e princípios técnicos. Partes dos objetos estão colocadas em
peças isoladas e inadequadas, raros objetos trazem etiquetas. Não há salas
especiais para exposições, necessário serviço de classificação, livros de
visitas, jetões para controle de visitantes, exposições temporárias e
comemorativas, estatuto, fichário nem catálogo descritivo. [...] Na sala do
segundo andar, todo o acervo encontra-se disperso, não existindo etiquetas,
arrumação, bem assim, meios propícios de defesa contra o estrago do tempo, tudo
que seja de acordo com os princípios técnicos modernos
(Garcez, 1958, p. 38).
Desse modo, é possível perceber a preocupação que Garcez
tinha quanto aos fazeres técnicos nos museus, ao processo de documentação,
preservação, comunicação, exposição, evidenciando que adequar a instituição ao
modelo técnico moderno (no tratamento das peças) era pensar uma classificação
dos objetos, uma linguagem, uma história a ser narrada a partir de uma reunião
de peças em espaços, nesse caso, em salas distintas, formando exposições
temáticas, comemorativas. O museu do IHGSE foi fundando em 1917 e, segundo
Garcez, era formado por “[...] objetos de variadas espécies sem defesa de
valorização” (Garcez, 1958, p. 38).
Outra instituição que existia nesse mesmo contexto era o
Museu Horácio Hora, criado pelo Decreto nº 31, em 16 maio de 1942, na cidade de
Laranjeiras. Segundo Garcez (1958, p. 42), o museu “[...] compreendia apenas
uma sala com o acervo espalhado sobre o assoalho e paredes”. Não havia “[...]
arrumação, organização, peças destinadas a proteção de objetos, etiquetas,
inventário nem catálogo descritivo” (Garcez, 1958, p. 42). Esta era uma
instituição que, assim como o museu do IHGSE, partilhava de uma prática na qual
os fazeres técnicos que visavam à preservação e à comunicação, não correspondia
ao que ele considerava como necessários aos fazeres museológicos. Desse modo,
através das críticas suscitadas pelo autor, ele se fez um conhecedor da área
técnica de museus, um conhecedor da Museologia que, provavelmente, respondia às
diretrizes técnicas do Curso de Museus, liderado por Gustavo Barroso, no Museu
Histórico Nacional do Rio de Janeiro.
No caso sergipano, é oportuno apresentar alguns
antecedentes. Sílvio Romero, crítico, ensaísta, folclorista da cidade de
Lagarto, Sergipe, teve sua contribuição na historiografia literária brasileira.
Como pesquisador, sob a influência do escritor e jurista Tobias Barreto, também
sergipano, dedicou-se em pensar o que seria a ‘civilização brasileira’. Em
Sergipe, seus estudos, que tinham a temática do folclore, principalmente quanto
ao registro de possíveis traços culturais que fundamentariam o ‘povo
brasileiro’, capturados na literatura, na poesia, nos causos etc., embasaram as
pesquisas sobre elementos caracterizadores da relação nacional/regional da
antiga província. É esse contexto, influenciado pelo pensamento destes autores,
que José Augusto Garcez teve como referência para a formulação do seu
pensamento enquanto jornalista, colecionador, escritor e poeta:
Em 1947, ainda muito novo, inscreve-se como candidato a
poltrona nº 10, vaga com falecimento de Artur Fortes. Implacavelmente, a
inscrição é cancelada pela interferência do acadêmico José Magalhães Carneiro.
Inconformado, José Augusto sustenta, no ‘diário de Sergipe’, uma série de
artigos protestando contra a injustiça. E obstinado e idealista, não apaga
aspirações nem a inspiração. Ao contrário, toma-se de fúria criativa,
escrevendo, agitando os meios culturais sergipanos, liderando intelectuais e
fundando movimentos de alta cultura.
(Cardoso, 2016, p. 220).
Assim, segundo os aportes sociológicos de Bourdieu (1983a),
é possível tomar como objeto de estudo a trajetória de José Augusto Garcez
junto ao campo de produção cultural e suas relações enquanto agente socialmente
instituído dentro das diversas áreas em que atuou. Reconhecendo as condições
sociais do estado de Sergipe no início do século XX e a sua produção cultural
no folclore, principalmente na literatura, é possível visualizar a atuação de
Garcez, até aquele momento, como jornalista, e as suas estratégias de aquisição
de capitais econômicos e culturais, norteando uma nova visão do que seria o
folclore em Sergipe e sua prática colecionista.
Dessa forma, evidenciar, a partir da estrutura do campo em
jogo – nesse caso, do folclore em Sergipe –, as estratégias de José Augusto
Garcez enquanto produtor, contribui para problematizar em que medida o
intelectual manipula as regras do jogo e, por meio de estratégias, tenta
implantar uma nova estrutura para a produção da crença em si a partir dos
empreendimentos realizados, visando à obtenção de legitimidade dentro desse
espaço de produção simbólico.
Segundo Bourdieu (1983a, p. 212), a obtenção de uma
autonomia legítima dentro de um espaço de poder é “[...] uma autonomia relativa
que se constrói pouco a pouco sob certas condições, no decorrer da história”. É
notável observar a posição que Garcez ocupava enquanto agente produtor e
produto de uma agência nos seus diferenciados campos, e pensar em que medida a
crença fabricada no campo dos museus é fruto das relações por eles
estabelecidas. Desse modo, é possível situar a trajetória de José Augusto
Garcez como metonímia do campo cultural e museológico sergipano ao longo do
século XX. Homem que, desde cedo, esteve mergulhado nas letras, jornalista e
escritor, atuou em diversos periódicos dentro e fora do estado de Sergipe,
tendo suas produções registradas nos principais jornais do Rio de Janeiro, de
São Paulo e de Alagoas. Dito isso, é notório que José Augusto Garcez soube, a
partir de sua posição social, manipular bem seus capitais para determinadas
leituras a respeito do que entendia como tradição, arte e cultura no estado de
Sergipe.
Em 1953, Garcez criou o Movimento Cultural de Sergipe, a fim
de mobilizar uma rede de intelectuais em virtude dos possíveis silêncios no
tocante à produção literária neste estado. O empreendimento cultural
destinava-se a editar obras de intelectuais anônimos, romancistas e poetas
sergipanos que não tinham condições de financiar a edição de suas produções.
Conhecido por muitos como um mecenas das letras, José Augusto Garcez, a partir
do Movimento Cultural de Sergipe, iniciou um processo de divulgação dos fazeres
culturais do estado, trazendo para esse circuito a apresentação de narrativas
sobre a cultura local, publicando mais de quarenta obras sobre diversos temas,
como Sociologia, Biologia, Ensaios, Crônicas, História, Romance, Poesia,
Economia, Finanças e Museologia (a exemplo do livro “Folclore: realidade e
destino dos museus”, de autoria do próprio Garcez), revelando nomes que
mobilizariam o campo cultural sergipano e nacional:
José Augusto Garcez revelou Santos Souza, Eunaldo Costa.
Publicou, ainda, livros de Florentino Meneses (“Grandeza e decadência e
renovação da vida”), José Calazans (“Euclides da Cunha e Siqueira de Menezes”),
Orlando Dantas (“Análises da inflação no Brasil”). No gênero Poesia, faz vir à
luz, de Santos Souza: “Cidade subterrânea”, “Relíquias”, “Ode órfica” e
“Cadernos de elegias”, “Pássaro de pedra e sono”; de José Amado Nascimento:
“Sermões”, “Minha cidade”, “Rapsódia de Aracaju”; de José Sampaio: “Nós acendemos
as nossas estrelas”. Obras completas de José Maria Fontes, “Sonho e realidade”.
Publicou mais outros poetas: Jacinto de Figueiredo (“Motivos de Aracaju”),
Sindulfo Barreto Filho (“Lagoa do Abaeté”), Giselda Morais (“Rosa do tempo”) e
outros, inclusive livros de versos do próprio José Augusto Garcez: “Invasão das
estrelas”, “Mensagens”, “Desejo-morto”, “Canudos submerso”, “Aurora de sangue”
e outros.
(Cardoso, 2016, p. 220).
É com a publicação destas obras que José Augusto Garcez
começa a ter notoriedade dentro e fora de Sergipe, trocando diversas
correspondências com escritores, jornalistas, folcloristas e expoentes
modernistas, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, participando de
diversos jornais em Sergipe, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, e em outros
países, como México e Portugal.
Ao analisar esses documentos, é possível atestar os
trânsitos culturais que Garcez instituía e o modo como eles reverberaram na
formação de seu pensamento, no tocante à preservação e ao registro da cultura
local. Sob o apoio do governo de Leandro Maciel, é dado ao “[...] intelectual
sergipano, idealizador do Movimento Cultural de Sergipe [...], excursionar as
diversas capitais brasileiras, em missão de intercâmbio cultural [...]”, sendo
recomendado “[...] às autoridades e aos intelectuais patrícios” (Garcez, 1958,
p. 156). Dentro dessa perspectiva, o Movimento Cultural promovia, além das
publicações, a realização de saraus em livrarias da capital, realizava
exposições como “[...] a seção de antropologia cultural, exposição interna e na
Livraria Regina Limitada [...] há dez anos, através de PRJ-6, o programa
radiofônico Panorama Cultural, no qual havia uma seção sobre a Missão do Museu”
(Garcez, 1958, p. 35).
Para além de todo o acervo bibliográfico divulgado por
Garcez como editor ou, algumas vezes, como autor, ele iniciou uma campanha em
favor da criação de um museu para o estado de Sergipe, em 1948. Publicando em
vários jornais, como Diário de Sergipe, O Nordeste, Correio de Aracaju, Sergipe
Jornal, todos de Aracaju, Sergipe; A Tarde, de Salvador, Bahia; Diário Carioca,
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; A Gazeta, de São Paulo, São Paulo;
observam-se matérias em que destacava a carência, no estado de Sergipe, de um
museu que preservasse a memória do ‘seu povo’.
O Museu Sergipano de Arte e Tradição foi criado em sua
própria residência, na cidade de Aracaju, e se constituiu a partir de sua
coleção particular. Devido à constante exportação de obras identificadas como
históricas, segundo Garcez (1958, p. 24): “[...] levando em consideração a
gravidade que assumia o descaso dos administradores [...], julguei conveniente
a começar, em 1946, adquirindo com recursos próprios, o acervo que hoje
mantenho”. Nesses termos, é possível pensar em que medida essa coleção particular,
localizada na residência da família, em comunhão com os objetos utilitários da
casa, também não contribuiu para que outros agentes também desempenhassem essa
atuação colecionista. O jornal A Noite, no ano de 1953, destacou, por exemplo:
“[...] outro setor do museu sergipano vendo-se o casal José Augusto Garcez e D.
Isaura Garcez. Eles cuidam do M. S. A. T. com um verdadeiro carinhos de pais”
(Souza, 1953, p. 29). Desse modo, é possível problematizar em que medida a sua
esposa, ocupando esse espaço do privado, também era responsável pela
configuração das exposições, pela conservação das peças, pela produção de
fichas catalográficas ou até mesmo pela seleção de objetos a serem comunicados,
até porque, como já foi salientado, esse não era o único projeto cultural
partilhado por José Augusto Garcez. Aqui, é importante notar que o papel da
esposa não é trivial. Na lógica de uma coleção constituída por uma figura
patriarcal, e ligada ao seu nome, esse patriarcado ajuda a naturalizar a ideia
de um museu criado por um ‘intelectual’ masculino.
Junto a esse museu, Garcez também cria um programa de rádio
chamado “Panorama cultural” que, para além das prosas e poesias que eram
proferidas semanalmente, também servia para informar aos ouvintes os estudos e
os serviços prestados no seu museu particular.
O acervo do Museu Sergipano de Arte e Tradição era composto
por objetos de procedência da capital do estado de Sergipe e de seu interior,
como a cidade de Itaporanga d’Ajuda, onde o intelectual tinha uma residência e
seus familiares ocupavam posições na política local. O museu tinha como
objetivo salvaguardar não só a cultura material do estado, mas todo e qualquer
suporte material que tratasse das questões culturais, políticas e históricas da
região. Além do museu, o folclorista criou uma biblioteca, denominada
Biblioteca Popular Tobias Barreto, em 1948. Paralelamente, ele também fundou um
instituto de pesquisa chamado Serviço de Pesquisa e Documentação Científica,
para arquivar e preservar documentos de cunho histórico, fatos e acontecimento
da cultura, da política e da geografia local.
Desse modo, é possível que tenha sido um serviço de pesquisa
onde a aquisição do acervo documental fosse feita para compor parte da coleção
do Museu Sergipano de Arte e Tradição, uma vez que, em cartas sugestivas do
escritor Luís da Câmara Cascudo a Garcez, em 1951, o mesmo relata que seria
interessante que o museu do estado fosse criado seguindo uma perspectiva
folclórica. Cascudo, considerado um dos grandes nomes do folclore brasileiro,
sugeriu que Garcez criasse um museu pensando-o como espaço movido pela cultura
material, e os demais acervos (arquivístico e documental) fossem destinados a
outras instituições do estado, como o Arquivo Público e o Instituto Histórico e
Geográfico de Sergipe. Portanto, é possível que a coleta da cultura material
dentro do campo do folclore servisse de registro, uma forma de evidenciar,
através da matéria, os saberes e fazeres dos integrantes de uma determinada
camada social. Para além dos registros documentais sobre crenças e os causos
por meio da oralidade, os objetos atestariam um saber artístico que, uma vez
preservado, era projetado para o público visitante um ideal de tradição
conservado no tempo.
A partir desse estímulo, Garcez iniciou uma campanha visando
mobilizar os agentes governamentais, políticos e gestores culturais a favor da criação
de um museu para o estado de Sergipe, um espaço onde sua coleção particular
fosse abrigada, respondesse às ‘normas técnicas’ adequadas aos fazeres
museológicos e, principalmente, difundisse sua leitura em torno do folclore.
Nosso argumento é de que compreender esses trânsitos intelectuais contribuirá
para a visualização de algumas das principais referências que orientaram a
concepção de folclore em Sergipe ao longo do século XX.
JOSÉ AUGUSTO GARCEZ E O MUSEU COMO ESPAÇO EDUCATIVO E SOCIAL
José Augusto Garcez nasceu em 19 de agosto de 1918, na Usina
Escurial (São Cristóvão, Sergipe), filho de Silvio Sobral Garcez e Carolina
Sobral Garcez, descendente de uma família possuidora de engenhos. Segundo
Santos, S. (2014), Garcez teria iniciado os seus estudos no município de
Itaporanga d’Ajuda, tendo aulas com professoras particulares. Seus estudos
secundários teriam sido feitos no Colégio Tobias Barreto e concluídos no
Colégio Marista, em Salvador, cidade onde iniciou o Curso de Direito que, por
problemas de saúde, não concluiu.
De volta ao seu estado natal, publicou em jornais de
Sergipe, Bahia e Rio de Janeiro. Em Aracaju, aos dezoito anos, ingressou no
jornalismo, estreando com a produção de uma biografia intitulada “Prado
Valladares”, em 1938. Pesquisador dedicado às áreas de Paleontologia e
Antropologia, também escreveu sobre Filosofia do Direito, Prolegômenos, Ciência
Zootécnica e Sociologia, tendo uma produção bibliográfica vasta, com destaque
para “Folclore: realidade e destino dos museus”, “Holandeses em Sergipe”,
“Destino da província”, “Canudos submerso” e “Aurora de sangue”. Garcez atuou
em diversas instituições culturais dentro e fora do estado, a exemplo do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e da Sociedade Brasileira de
Folclore.
Diante de um possível relato que pudesse indiciar os
trânsitos intelectuais que o colecionador e folclorista José Augusto Garcez
obteve para construção de suas práticas culturais, é possível sinalizar a
presença do folclorista Luís da Câmara Cascudo, a quem recebeu em terras
sergipanas no dia 22 de abril de 1951, a convite de Arnaldo Rolemberg Garcez,
então governador do estado, primo e cunhado de José Augusto Garcez. Esse
encontro foi motivado pela comemoração do centenário da morte do folclorista
sergipano Sílvio Romero. Acompanhado por uma comitiva de intelectuais locais,
Luís da Câmara Cascudo conheceu os bens naturais em terras sergipanas, os
monumentos e os bens culturais do estado de Sergipe, principalmente a antiga
capital, a cidade de São Cristóvão.
Certamente, em razão da visita do folclorista potiguar para
terras sergipanas e o tamanho do seu prestígio no campo de produção, no dia 20
de abril de 1951 o Sergipe Jornal trazia a matéria “Isto é pra você ler,
intelectual de província”, assinada por José Cruz. Não obstante sublinhar que o
estado possuía um museu com uma vasta coleção de arte popular, artesanato e
tudo aquilo que se relacionava ao folclore, considerada pelos doutos como uma
das maiores do Brasil, sugeriu a Câmara Cascudo que aproveitasse a sua presença
e fundasse, em Aracaju, antes de regressar a Natal, o Centro Sergipano de
Tradição:
Somos de parecer que o Centro Sergipano de Tradição deveria
ter um Museu em que figurassem os mais diversos pitorescos objetos de indústria
empírica indígena, tais como cerâmica, cestos e cestas, côco de tirar água,
redes de embalar, redes de pescar, brinquedos (inclusive bruxas de pano e o
querido “Mané Gostoso” das crianças do nosso tempo), rendas, colheres de pau,
pilões, enfim, tudo que bem demonstrasse aos olhos pesquisadores e curiosos dos
visitantes a incipiente indústria popular sergipense.
(In: Garcez, 1958, p. 64).
Nesse aspecto, é possível evidenciar os elementos a serem
destinados ao museu e a forma como eles seriam classificados. A cultura
material indígena é pensada como materialização de um povo que estaria na
formação inicial da cultura local, de uma arte ‘incipiente’, ou seja, de uma
autenticidade étnica tradicional de povo originário daquele lugar. Isso se
torna evidente, uma vez que, para Garcez, tudo o que foi assinalado pelo
jornalista o mesmo já possuía desde 1948: “[...] o que nos faltava realmente e
ainda não existe é um Museu Oficial” (Garcez, 1958, p. 64).
Aberto à sociedade sergipana, o espaço museológico era
mediado pelo colecionador que, através do próprio relato, apresentava “[...] a
origem do acervo, bem assim o aspecto histórico, empenhando esforço a fim de
oferecer ao público o sentido primordial que é de colocar o museu, na missão
educativa e social” (Garcez, 1958, p. 35). Para ele, o museu não se configurava
mais como um arquivo de peças mortas, para o deleite de turistas, e sim era
visto como um espaço de ensino: “[...] salientando aspectos do passado,
conjunto de sucessivas e diversas civilizações; [o museu traduziria] a genuína
representação folclórica” (Garcez, 1958, p. 23).
Certamente, essas referências foram construídas a partir de
suas relações intelectuais, dos debates que travava com outros folcloristas.
Garcez dialogava com essas referências estendendo-as para pensar um espaço que
preservasse a cultura, a arte e a história do ‘povo sergipano’ através da
cultura material. Talvez esteja aí um dos indícios que promoveram sua inserção
no campo museológico e que demarcaram seu pensamento:
No momento contemporâneo, observando-se o desenvolvimento
extraordinário das ciências sociais, não se concebe a formação de um museu
simplesmente com exposições permanentes de peças representando a pequena vida
econômica regional, documentos tradicionais ou não, para a delícia dos
espectadores. A cultura material é objeto de exame, estudos e interpretação de
base científica. A participação da criação artística do povo, as peças
inspiradas e executadas e sem tortura e técnica apuradas, modelos espontâneos,
tudo que for preparado por mãos ásperas através de rústicos processos, – são
obras intuitivas, simples e esclarecedoras. Permanecem ligados à educação popular.
(Garcez, 1958, p. 81).
O intuito era construir um museu que representasse as
‘tradições’ e que também guardasse documentos vivos do ‘patrimônio histórico’.
Dando continuidade à campanha denominada por ele de histórico-cultural, visando
à criação de um museu para Sergipe, Garcez, em 23 de março de 1958, expediu
correspondências ao governador Leandro Maciel Maynard e ao 3º Bispo de Aracaju,
D. José Vicente Távora, a respeito da possível aquisição, em forma de permuta
ao estado, do prédio da antiga cúria diocesana, “[...] mansão memorável, onde
várias gerações iriam encontrar, através dos documentos vivos, capítulos mais
empolgantes da nossa história” (Garcez, 1958, p. 57).
Nessas duas correspondências, Garcez evidencia que, desde
1946, ano em que começou a colecionar ‘coisas de Sergipe’, foram inúmeras
tentativas em prol do incentivo das autoridades locais para aquisição de um
espaço físico para o museu de Sergipe, onde salvaguardasse “[...] o patrimônio
histórico e cultural do estado” (Garcez, 1958, p. 24). Em análise das
correspondências, o que chama atenção são as táticas que Garcez utilizou para a
obtenção dos resultados. Mediante à frustação de não ter conseguido realizar
isso com o apoio do antigo governador, solicitou ao então governador Leandro Maciel
a formação do museu na antiga casa da cúria diocesana, na justificativa de que,
em virtude dos trabalhos que o mesmo desenvolvia no estado, “[...] tornar-se-ia
imprescindível a criação de mais uma obra na profícua gestão [...], teríamos
assim com a soma das peças existentes na biblioteca pública, Instituto
Histórico e o Museu Sergipano de Arte e Tradição um acervo completo, plasmado,
atuante e instrutivo” (Garcez, 1958, p. 71). Logo, vale destacar que, alegando
a não valorização e o estímulo do então governador para a criação do museu,
iria encaixotar todo o seu acervo, que estava disponível em um prédio alugado,
em sua residência “[...] de limites exíguos, inadaptados às verdadeiras
condições museológicas, aonde centenas de peças se amontoam e se espraiam em
várias dependências, afetando, inclusive, a saúde de minha família” (Garcez,
1958, p. 71).
O museu serviria para instruir e nortear um entendimento de
arte, de valores artísticos, mesmo às pessoas não habituadas a vivenciar
espaços culturais. Como assinalado, espaços sediados pelas elites iriam
incorporar outra parte da população, ensinando ao público conteúdos artísticos:
A arte popular – primitiva e a atual – são manifestações de
ordem estética cujos elementos transmitem, no tempo e no espaço, vocações que
nos levam a compreensão dos espécimes artísticos. Nos ciclos e temas da ciência
folclórica, observamos associados às ciências do Homem. Tudo que se coligiu,
coordenou e estudou através das classificações científicas tem de figurar
explicitamente sem adulterações nas interpretações realizadas. As criações
anônimas, as lendas, canções – remotos mistérios das superstições, adagiário e
advinhas, danças etc., literatura oral –, ao lado das artes populares, são
demonstrações folclóricas ligadas às tradições dos povos e que se vão ampliando
nos museus.
(Garcez, 1958, p. 95).
Nesse contexto, Garcez evidencia a arte sacra e o papel da
Igreja Católica junto à formação do museu:
A igreja terá oportunidade de demonstrar decisiva
colaboração na sala destinada a Arte Sacra, representada por peças místicas
modeladas no barro e esculpidas em madeira, integradas no departamento de Arte
e Cultura, servindo para proteger e conservar as relíquias que se estenderão às
peças barrocas, excedentes das restaurações dos Templos antigos e que me coube
o cuidado de recolher, preservando dos atentados, forjada pela expressão
artística dos abnegados jesuítas, que, inegavelmente, deixam em plagas
sergipanas autênticos monumentos estéticos, até então desafiando a ação deteriorante
do século.
(Garcez, 1958, p. 74).
Como justificativa ao apoio solicitado ao represente da
Igreja, Garcez (1958, p. 74) declara: “[...] o sentido social e moral da Arte,
sua função na mensagem educativa, bem assim reintegraremos, na devida posição,
os benfeitores das civilizações que conceberam trabalhos imperecíveis”.
Devido à falta de apoio, é possível que, diante de inúmeras
campanhas presentes em diferentes meios culturais, Garcez (1958) tenha dado ao
livro “Folclore: realidade e destino dos museus” uma feição autobiográfica,
preenchendo-o de posições práticas sobre as atividades desenvolvidas no Museu
Sergipano de Arte e Tradição, como também as possíveis reivindicações e
sugestões, no tocante à gestão de poderes públicos locais quanto à área
cultural e aos órgãos regulamentadores de museus.
Movido por visão modernista, onde era preciso salvaguardar
as tradições do passado como elemento de identidade da nação, o registro de
elementos da cultura local permeava as ações do folclorista sergipano.
Influenciado por uma construção do folclore, amparado no Movimento Folclorista
nas décadas de 1950 e 1960, o museu serviria como lugar para a ‘educação do
povo’. Seria uma forma de vivenciar, através da materialidade, o passado, as
tradições, para refletir sobre a cultura local, o ‘povo sergipano’, através dos
objetos em suas temporalidades constitutivas:
O museu, centro de energias culturais e educativas, acolhe
os estudantes e lhes transmite a compreensão real de tudo aquilo que os estudos
teóricos e metodológicos não conseguiram transmitir com clareza e perfeita
visão dos conhecimentos essenciais. Este é um dos aspectos salientes da missão
do museu que os museólogos procuram debater no interesse de elucidar,
colaborando no âmbito dos problemas educacionais. O museu é complemento da
experiência científica, laboratório da civilização técnica e fundamental dos
nossos conhecimentos. Proporciona todos os esclarecimentos e preparação
educacional da massa proletária, conhecimentos científicos do ensino superior,
aprimoramento do ensino primário. O museu é, podemos afirmar, o complemento do
saber e ponto vital das relações humanas.
(Garcez, 1958, p. 92).
Nesse aspecto, é possível que o pensamento de Garcez, no
tocante ao espaço do museu e aos objetos de folclore, estivesse pautado no
pensamento de Gustavo Barroso, visto que, para ele, “[...] o patrimônio
histórico ao lado destas legítimas apresentações da alma sergipana, cada
espécie situada em sua área especializada, corrobora para o entendimento
histórico-cultural” (Garcez, 1958, p. 95). Em suas andanças pelo país, é
provável que Garcez tenha recebido influências desse paradigma museológico
dominante, no qual a tradição e a arte popular representavam a ‘cultura do
povo’. Sob esse prisma, Garcez (1958, p. 95) entende que a arte popular, “[...]
primitiva e atual, são manifestações e ordem de estética [...]”, cuja matéria
pode transmitir, nos espaços discursivos, compreensões do desenvolvimento
artístico.
A matéria no jornal A Noite, do Rio de Janeiro, datada de 27
de abril de 1957, destaca os trânsitos que Garcez realizava. Sob o título “No
Rio, o fundador do Movimento Cultural de Sergipe”, o texto informa que Garcez
ganhou uma arma das mãos de Gustavo Barroso, como forma de estímulo para as
suas ações: “agora mesmo, trouxe do Rio uma arma antiga, que o historiador
Gustavo Barroso reputa como única no Brasil, peça raríssima e de inestimável
valor” (No Rio..., 1957, p. 6). Esse documento demonstra algumas das parcerias
e dos itinerários que o intelectual construiu ao longo de sua trajetória,
estímulos prestados pela rede de sociabilidade que o folclorista estabeleceu
como resultado de agentes culturais que tinham conhecimentos dos fazeres
museológicos.
Nesse caso, Gustavo Barroso, enquanto agente consagrado no
campo de produção dos fazeres museológicos no Brasil e na produção de uma
narrativa do folclore, ao doar a peça para o museu de José Augusto Garcez,
manifesta uma assinatura, ao passo que produz a crença na produção cultural do
colecionador. Em diálogo com Bourdieu, no texto “Mas quem criou os criadores?”,
observa-se que não é a raridade da arma que foi doada a Garcez que importa para
a produção da crença, “[...] mas a raridade do produtor, manifestada pela
assinatura [...]” (Bourdieu, 1983b, p. 230, grifo do autor), ou seja, é
constituída a crença coletiva nesse ato, no qual o poder do produtor
manifestado no produto alimenta a crença no museu e, nesse caso, Garcez também
se faz a partir desse ato de doação.
Para Garcez (1958), o objeto do folclore faz parte da
natureza humana de criar coisas. Independente da área de interesse, este objeto
serviria para melhor apresentação das disciplinas instituídas nas escolas, no
campo do saber. Era a partir das habilidades técnicas no processo de formação
dos objetos que Garcez sustentava a ideia de tradição, objetos populares que
possivelmente eram constituídos pelos aprendizados passados de geração a
geração, pela oralidade, como assinalava o folclorista Sílvio Romero.
Garcez também foi influenciado pelo pensamento do jurista
Tobias Barreto, com referência a uma literatura alemã, onde o tempo e o espaço,
a arte e o artista davam-se nesses momentos de transferência do saber que, por
ser cultural, acontecia de forma dinâmica. O folclorista, na prática,
desenvolvia uma cultura local, na qual o objeto do seu museu, a poesia editada
pelo Movimento Cultural de Sergipe, a literatura falada na sua rádio difusora
Panorama Cultural, constituía o que Bourdieu (1983b) denominou de ‘prática
distintiva’ para obtenção de legitimidade no campo do folclore em Sergipe.
TRÂNSITOS INTELECTUAIS: HERANÇAS DE UM PENSAMENTO
FOLCLORISTA
A seleção de intenções e de gestualidades para a produção de
determinadas crenças a partir da manipulação de repertórios expográficos nos
museus, compreendidos enquanto espaços de produção, arquivamento e circulação
de memórias, dialoga com a expressão ‘imaginação museal’, cunhada por Chagas
(2005), conceito que concebe objetos, formas e imagens como suportes de
memórias mobilizados na ‘narrativa poética do espaço’. Utilizando esse
conceito, Oliveira (2012) apontou indícios de uma ‘imaginação museal’ no
pensamento dos principais estudiosos do folclore nacional, como Sílvio Romero,
Mário de Andrade e Gustavo Barroso. Partindo dessas análises, examinaremos em
que medida é possível evidenciar uma ‘imaginação museal’ nas práticas
preservacionistas desenvolvidas por José Augusto Garcez.
Em seu livro autobiográfico, Garcez (1958) utiliza, na
construção da narrativa, autores que contribuíram para a produção da crença em
seu nome e nas ações executadas por ele. Intelectuais que discutem o estudo do folclore
enquanto ciência; o campo do museu e sua função enquanto espaço dinâmico; a
educação a partir dos e nos museus; a cultura material como parte de uma
representação folclórica; ou seja, conceitos apreendidos pelo autor que
materializaram seus fazeres enquanto poeta, jornalista e folclorista. Na
verdade, é importante pensar os trânsitos e as heranças intelectuais que
contribuíram para colocar em prática as ações de preservação por meio da
‘imaginação museal’ dos folcloristas. Para tanto, nos debruçaremos nesses
pensamentos que, possivelmente, contribuíram para pôr em prática as ações
desenvolvidas por José Augusto Garcez.
No século XIX, a oralidade, os contos, os versos e as lendas
talvez sejam os primeiros registros coletados por pesquisadores direcionados em
apresentar a produção do ‘homem comum’ como portador de uma herança que
serviria para ‘autenticar’ uma dada nacionalidade. No Brasil, esses registros
direcionados ao popular integraram um processo de valorização do ‘povo’, dando
a este o lugar do primitivismo, de uma cultura pitoresca. Como indica Burke
(2010), o ‘povo’, sendo um termo muito amplo e contraditório, foi definido de
várias formas pelos diversos campos do saber.
O folclorista sergipano Sílvio Romero, em meados do século
XIX, já desenvolvia pesquisas com o intuito de registrar fatos
nacionais/locais. Segundo Vânia Dolores de Oliveira, os seus registros não
evidenciavam “[...] propriamente a ideia de museu como entendemos hoje, mas uma
nota, um viés preservacionista, percebido na preocupação com o registro das
coisas nacionais” (Oliveira, 2011, p. 174). Sílvio Romero, em um momento em que
o estudo da cultura ainda não era algo em voga, percebeu, no registro dos
contos, da poesia e da música, as particularidades de povos, civilizações e etnias.
Herdeiro intelectual do jurista sergipano Tobias Barreto,
que tinha uma produção muito latente no molde de pensar dos germânicos, com as
teorias de Kant, Sílvio “[...] chama atenção para coleta de materiais,
indicando fontes, nacionalidades e produções recentes originadas dos mestiços e
das populações atuais” (Garcez, 1958, p. 133). É nesse contexto de análise e
coleta que predominaram os estudos do folclore em Sergipe no século XIX e
início do século XX. Sob defesa de que o regionalismo é uma constância para a
produção do folclore, Garcez, como sergipano e herdeiro desse modelo de
apresentação da cultura local, defendia o regionalismo, compreendendo-o como:
[...] testemunhos materiais da arte, nos costumes etc.
decorrem da tradição atuante de onde emergem os sentimentos populares. A
contribuição rudimentar indígena e africana somada às influências da formação
da cultura luso-brasileira são temas pertinentes de interação onde buscamos
descobrir os prodígios da criação estética, oral e popular, sobrevivência dos
agrupamentos humanos
(Garcez, 1958, p. 132).
Como ora assinalado, surge uma ampliação por parte de Garcez
do que seriam esses testemunhos dos costumes, bem como a noção de arte, nesse
caso, de arte popular. Assim, é possível supor que os olhares de Mário de
Andrade e do historiador Gustavo Barroso tenham influenciado de algum modo
Garcez em seus fazeres museológicos no Museu de Arte e Tradição. Para Mário de
Andrade, a função dos museus era se tornarem uma instituição “[...] [contrária]
à ideia de cemitérios de relíquias, [...] ‘museus vivos, que sejam um
ensinamento ativo’” (Oliveira, 2011, p. 175), que se assemelha, quanto ao
discurso que propagava, à função do Museu Sergipano de Arte e Tradição.
Conforme salientou Oliveira (2011), se Mário de Andrade dava maior importância
à função educativa da instituição e o seu papel como lugar de conhecimento,
mais do que qualquer finalidade outra aos objetos, Garcez partilhava da mesma
ideia.
Tendo o modernista criado um anteprojeto que serviu de base
para implementação de uma institucionalização do patrimônio e dos museus,
Garcez legava a criação de espaços de memória onde seriam fabricadas as
representações que formariam o imaginário sobre a nação. Entre as propostas,
vale destacar a criação de um Museu de Arqueologia e Etnografia, onde
[...] seriam recolhidos e preservados os exemplares
representativos da arte popular. [...] [Entendo] as manifestações artísticas,
nacional e estrangeira [...] que de alguma forma interessem a Etnografia, “com
exceção da ameríndia”, enumerando objetos, monumentos – arquitetura popular,
cruzeiros, capelas, cruzes mortuárias de beira de estrada, jardim etc.,
paisagem e folclore – “música popular, contos, história, lendas, superstições,
medicina, receitas culinárias, provérbios, ditos, danças dramáticas etc.”
(Andrade, M., 2002, p. 274 apud Oliveira, 2011, p. 177).
A partir dessa classificação, são notórias as aproximações
do pensamento de Garcez no tocante a esse entendimento prévio de arte popular,
exceto quanto a não adoção de objetos indígenas dentro desta classificação.
Sobre esse viés de arte popular, cunhado pelo colecionador José Augusto Garcez,
é possível que o mesmo aderisse expograficamente aos conceitos em torno da
etnografia e da arte popular enquanto parte de um folclore constituinte, que,
na expografia do seu museu, podem ser percebidos como sinônimos.
Dando continuidade à construção da ‘imaginação museal’ de
Garcez, é notória a influência que o advogado e historiador Gustavo Barroso
deteve nos seus fazeres práticos e discursivos de nação, de arte e de popular.
É possível dizer que, mergulhado em uma literatura que versa sobre os estudos
de patrimônio, nação e memória, Garcez materializou, naquele momento, em
Sergipe, uma concepção moderna de museu, construindo uma nova imaginação
folclórica e museológica para o estado, diferindo das experiências museológicas
até então existentes (Britto et al., 2018).
Como agente consagrado no campo intelectual que versa sobre
o estudo de museus no Brasil e a institucionalização da memória nacional,
Gustavo Barroso propôs a criação de um museu ergológico brasileiro na década de
1940, projeto que provavelmente influenciou o pensamento de Garcez,
principalmente sobre o discurso de que, nas artes populares, estaria a ‘alma do
povo’, a ‘nacionalidade brasileira’. Para Oliveira (2012), é interessante se
perguntar, no presente, em que medida se torna difícil compreender como
Barroso, um homem idealizador de um museu que buscou imortalizar as elites,
pode ter olhado para questões do folclore.
Barroso movia severas críticas aos estudos folcloristas que
se dedicavam somente às manifestações espirituais, deixando de lado a
materialidade de objetos que, pertencentes a esse grupo, poderiam ser
preservados, proposta por ele chamada de ‘museu ergológico’. Sob esse ponto, é
notório como ele contribuiu para a produção dos discursos mobilizados por
Garcez em seu livro. Para o sergipano, o folclore defendido enquanto ciência
apresentava-se seguindo as propostas de Barroso. De um lado, a anemologia como
sinônimo da alma e, de outra parte, a ergologia, debruçada nas artes e ofícios,
ilustrando “[...] artes e ofícios tradicionais [...]” do povo brasileiro (Oliveira,
2012, p. 181). Sobre essa classificação do material, é possível deduzir que
Garcez teve suas influências na produção de um museu que se assemelhava à
proposta de Barroso quanto à ideia de um ‘museu ergológico’, tendo propagado em
seu manifesto para oficializar esse espaço, onde a técnica, “[...] os modos de
fazer, que ele denomina, indistintamente, arte [...]” (Oliveira, 2012, p. 181),
o que pode ser observado nas quatorze divisões:
Arte da Habitação, Arte Naval, Arte da Pescaria, Arte da
Caça, [...] Artes Domésticas (com as subdivisões, culinária, fiação e vestuário
e iluminação), Artes do Artesanato, Arte das Representações, Arte Coreográfica,
Arte dos Mecanismos, Arte da Destilação, Arte da Feitiçaria, Arte Funerária,
Artes da Criação dos Bichos e Artes Diversas. Examinando sua classificação do
“material ergológico”, vê-se que nas “Artes do Artesanato” Gustavo Barroso
incluía: Cutelaria e Armaria, Malharia, Serralharia e Ferraria, Joalharia,
Cerâmica, Imaginária, Selaria, Carpintaria, Marcenaria, Sapataria, Funilaria,
Cordoaria, Tanoaria, Cestaria e Tecidos de Fibras, Barbearia, Carreiro,
Foguetaria. Até mesmo quando enumera os itens que integram a cerâmica,
limita-se a seu aspecto utilitário, exceção aberta apenas para as “figuras
antropomorfas ou zoomorfas para paliteiro ou brinquedo de criança”.
(Oliveira, 2012, p. 180-181).
Assim, é possível estimar que, entre os agentes que pensaram
a formação de um museu popular, das artes populares no Brasil, Gustavo Barroso
tenha influenciado as práticas de coleta que o colecionador sergipano Garcez
utilizou, a partir dos anos de 1940, para a formação do seu museu, inaugurado
em 1948. Em seu livro, Garcez (1958) cita um pensamento de Barroso, quando, no
estudo sobre “Introdução à técnica de museus”, afirma que um museu não deve ser
“[...] unicamente um necrotério de relíquias históricas, etnográficas,
artísticas, folclóricas ou arqueológicas; mas um organismo vivo que se imponha
pelo valor educativo, ressuscitando o passado nele acumulado” (In: Garcez,
1958, p. 15).
Sob essa perspectiva, mergulhado nas discussões que
reverberam o campo dos museus na década de 1950, e voltando para esse espaço um
olhar educativo, aliado a programas institucionais de educação, como lugar
fornecedor de cultura, Garcez também se posiciona conforme o museólogo
Florisvaldo dos Santos Trigueiro, formado pelo Curso de Museus no Museu
Histórico Nacional, quanto ao papel dos museus na educação do povo. Isso se
comprova quando Garcez refere-se a um livro de sua autoria, ainda em elaboração,
a respeito da “[...] função do Museu no sistema educacional Brasileiro,
devidamente ilustrado” (Garcez, 1958, p. 35).
Para Garcez (1958), o espaço do museu caracterizava-se como
uma ‘escola viva’, sublinhando o seu papel preponderante na educação do povo e
a sua relação com o público. Influenciado pelos estudos do museólogo
Florisvaldo dos Santos Trigueiro, entendia “[...] que a finalidade do museu é
informar educando [...], atingir os seus fins educativos, os métodos são os
mais variados, já que as relações com o público são as mais diversas” (Garcez,
1958, p. 48). Em diálogo com Trigueiro, Garcez construiu uma narrativa histórica
de autores por ele referenciados, que o legitimava como herdeiro de um
pensamento a respeito desse espaço. Percebe-se que suas ações e motivações
manifestam esses pensadores que, refletindo sobre o campo dos museus, do
patrimônio, dos estudos do folclore, da cultura material e seu papel como
espaço educativo, souberam trilhar caminhos em campos onde tais discussões os
reinventavam, ao passo que também fabricavam uma nova narrativa do folclore em
Sergipe, a qual valorizava os folguedos enquanto arte, diferindo das propostas
de Sílvio Romero e Tobias Barreto.
Todavia, foi a partir do pesquisador, escritor e folclorista
Luís da Câmara Cascudo que Garcez sustentou seu pensamento sobre um folclore
local/nacional. Considerado um dos maiores pesquisadores do folclore
brasileiro, o autor potiguar estudou este assunto como um processo onde a
cultura de uma localidade se manifesta a partir de tradições, da preservação de
suas raízes culturais, ou seja, uma cultura que é transmitida oralmente e é
preservada pelos costumes. É baseado nesse pensamento que José Augusto Garcez
empreendeu o seu processo colecionista para mobilizar as ‘tradições do povo
sergipano’. Em visita ao Museu Sergipano de Arte e Tradição, no ano de 1958,
Cascudo registra o arsenal de objetos coletados pelo folclorista sergipano, o
que contribui para a compreensão de como se dava o processo criativo do
colecionador:
Visito a biblioteca de José Augusto Garcez. E a sua galeria
de arte popular. Muitos espécimes curiosos de barro, madeira, osso, pastoris,
presépios, o grupo de lampião, macumbas, candomblés, amuletos, reminiscências
de viagens. Muita cousa pra ver e estudar. E quadros, fotos, e objetos dignos
de demora atenta. A biblioteca anuncia o estudioso que se pode credenciar para
todos os voos. Todos os gêneros estão amplamente representados. Documentário
sério. A hemeroteca é variada e copiosa. José Augusto Garcez é abelha que ainda
não fixou a flor de sua especialização cultural. Sua bibliografia é viva,
pessoal, abrangendo os horizontes mais largos e gerais, direito, jornalismo,
história, critica poesia, assuntos agrícolas, pecuarismo, etnografia,
folclorismo.
(In: Garcez, 1958, p. 58).
Diante do escrito, é possível perceber que José Augusto
Garcez conseguiu compor, para além do museu, um espaço de documentação e
preservação do que seria possível e lhe interessava salvaguardar da ‘memória do
povo de Sergipe’. É notória a participação de Câmara Cascudo diante desse
empreendimento cultural, como também se torna uma forma de legitimar suas ações
folcloristas, ao mapear esses fazeres culturais no estado.
Desse modo, é possível que a formação de uma coleção onde a
‘sergipanidade’ estava sendo representada evidencie diversas compreensões em
torno da ideia de Sergipe. Garcez, como mediador desse fluxo de comunicação, de
referências múltiplas, atuando e participando frente a diversas instituições,
transportou para sua obra a criação de um Sergipe poético, literário,
artístico, histórico e museal, respondendo aos desígnios do campo do folclore
da época, com suas crenças, motivações e objetos de estudo. Por isso, a
importância de se criar um museu com essas características.
MUSEU SERGIPANO DE ARTE E TRADIÇÃO (1948)
Localizado na avenida Barão de Maruim, número 629, na
capital Aracaju, o Museu Sergipano de Arte e Tradição possuía caráter autônomo
e era vinculado à residência de José Augusto Garcez. Denominado como núcleo
histórico e artístico na época da sua formação, Garcez criou o museu “[...] em
virtude da constante exportação de nossas relíquias históricas” (Garcez, 1958,
p. 24). Devido ao descaso quanto à evasão do “[...] patrimônio histórico e
artístico cultural do estado” (Garcez, 1958, p. 24), ele iniciou, em 1946,
através de recursos próprios, seu ato de colecionar objetos de diversas
tipologias e procedências:
A casa de José Augusto Garcez é um museu de pequenas
proporções: mas um verdadeiro museu onde se encontram elementos para estudo no
setor da história, da pintura, da numismática e principalmente cerâmica. E que
paciência para empregar o tempo em preciosas anotações sobre a procedência, a
época e a utilidade dos espécimes raros que lhe enriquecem as paredes, as estantes
e os armários.
(In: Garcez, 1958, p. 21).
Empreendimento particular, em casa alugada, o museu era
amparado pelos conhecimentos técnicos da prática museológica, quanto à
organização, arrumação, catalogação, restauração e classificação dos objetos.
Garcez classificou a sua coleção da seguinte maneira, ao modo de achados e
aquisições:
Achados referentes à Paleontologia (fósseis de Mastodonte e
Megatherium) e de outros animais.
Objetos que representam a etnologia brasileira. Aquisições.
Arte Sacra: - imagens em madeira, terracota, porcelana,
gesso, cera, bronze. Sinos, peças barrocas etc.
Arte popular em geral, inclusive artesanato. Especificação
do material: terracota, couro, barro comum, chifres, sisal, osso, cipó,
palhinha, taquara, tucum, fio, caroá, coco, flecha etc.
Armaria: - pistolas, armas brancas, lanças, trabucos, fuzis,
rifles, garruchas e espadas. Máquinas de guerra: - canhões e balas.
Instrumento de tortura: - tronco.
Ciclo do Cangaceiro: embornais de pano e couro, cantil,
chapéu e punhais que pertenceram aos bandidos: José Baiano e Lampião.
Ciclo da Escravidão - peças e documentos.
Iconografia: imagens e quadros.
Animais paquidermizados.
Antropologia Cultural. (Garcez, 1958, p. 34).
Diante do que foi enumerado nos itens anteriores e da forma
como Garcez classificou a sua coleção em categorias, informada no seu livro
“Folclore: realidade e destino dos museus”, é possível atestar que a formulação
do seu pensamento sobre o folclore se faz a partir dos seus trânsitos entre o
campo do folclore, dos museus, do entendimento de arte nesses espaços
culturais, bem como da ideia de tradição.
Em nenhum momento José Augusto Garcez defendeu a formação do
seu museu enquanto folclore, mas como um museu misto. O pensamento de arte
popular aplicado ao museu, em resposta sugestiva às correspondências trocadas
por Luís da Câmara Cascudo, seria uma das faces do folclore. Influenciado
também pelo pensamento de Gustavo Barroso, quando este promoveu a proposta de
um ‘museu ergológico’, um museu da ‘alma popular’ para nação, entendeu esses
elementos enquadrados na categoria de arte que, frente ao universo popular,
estariam mais atrelados às habilidades artísticas que o agente desenvolvia no
objeto material, adotando, dentro dessa perspectiva, como instrumento, o manual
técnico de museus elaborado por Gustavo Barroso.
Garcez construiu, em Sergipe, o entendimento de um folclore
que defendia a oralidade, a poesia e a cultura material, esta última
reconhecida como arte. Logo, é notório no colecionador algumas contradições do
que ele entende enquanto a funcionalidade do espaço museu e a aplicação do
estudo do folclore nesse espaço.
Na prática, no tocante à criação de sua coleção, é possível
atestar que o seu museu seja mais um ‘gabinete de curiosidades’1, um lugar de
coisas de Sergipe. Todavia, no momento de implantação de um ‘museu oficial’,
institucionalizado, se respaldou dos conceitos técnicos e práticos de
classificação, preservação, comunicação, e do conceito de museu formulado pelo
International Council of Museums (ICOM), seus objetivos para a sociedade,
missão educativa e o papel das escolas dentro desse processo de aprendizagem.
Segundo Cláudio de Jesus Santos, a coleção de Garcez foi
fruto das viagens que o colecionador fez pelo interior do estado de Sergipe,
baseadas no ideal de preservação do popular, do tradicional. Sob influência do
pensamento modernista, o museu surgiu com o “[...] intuito de musealizar a
cultura popular sergipana através de sua coleção, a fim de inserir Sergipe
nesse projeto de modernidade cultural” (Santos, C., 2014, p. 60).
É possível perceber, nas práticas executadas pelo
intelectual, que a informação transmitida a partir da coleção estava muito
embasada por uma narrativa histórica, onde os tempos do passado e do presente
seriam evidenciados pelas habilidades técnicas, pelos objetos históricos, pelas
narrativas míticas que fomentariam a ‘tradição do povo sergipano’. A cultura
material passaria a ser um atestado dos avanços, do tempo e do espaço que
responderia à cultura de Sergipe.
Portanto, é importante analisar, ainda que de forma inicial,
as fotografias publicadas no livro autobiográfico do colecionador (Garcez,
1958), para um possível entendimento de como se configurava a expografia do
Museu Sergipano de Arte e Tradição e quais representações materiais ele buscou
salvaguardar como expressão cultural dos fazeres artísticos do ‘povo
sergipano’. O estudo das imagens, nesse caso, como fonte de análise, torna-se
ferramenta significativa, uma vez que a publicação em uma de suas obras é parte
de uma estratégia de promoção e divulgação de suas práticas museológicas,
construindo a fabricação da crença em si, a partir do empreendimento criado
(Bourdieu, 2002). Após a morte do colecionador, na década de 1990, a coleção do
museu foi desmembrada para outras instituições museológicas no estado (Museu
Histórico de Sergipe, Museu Afro-Brasileiro de Sergipe e Memorial de Sergipe),
encenando, hoje, novas narrativas curatoriais. Na análise desses registros,
publicados como imagens ilustrativas de uma prática expográfica na primeira
metade do século XX, é possível delinear uma narrativa histórica de como se
configuravam os fazeres museológicos e folclóricos em Sergipe, a partir do
pensamento do colecionador.
Assim, orientado pelos aportes analíticos do historiador
Burke (2004), quando sinaliza a importância do uso da imagem como fonte capaz
de evidenciar um ‘testemunho ocular’, percebemos de que forma, através das
análises desses registros, é possível evidenciar uma provável prática
museográfica que reverberava em Sergipe nas primeiras décadas do século XX.
Para Peter Burke, o uso da imagem como testemunho histórico
constitui-se em uma importante ferramenta de análise para uma pesquisa
científica de caráter histórico-cultural. Segundo seus apontamentos, a imagem,
para além de um mero registro ilustrativo de informações de resultados
analíticos já alcançados, pode, de forma criteriosa, tornar-se uma importante
fonte de análise de possíveis evidências capazes de alcançar impressões de uma
determinada época, de um determinado fazer social, na construção de uma
narrativa histórica. Dessa forma, em diálogo com o autor, o registro aqui
analisado configura-se em fotografias que podem ser tanto uma evidência histórica
quanto a própria história, visto que a sua produção se faz a partir de um olhar
de uma determinada escala social, de um interesse a ser atingido por Garcez.
Analisaremos, desse modo, os registros fotográficos que
materializam, no presente, um projeto fundado pelo colecionador sergipano em
meados do século XX. O fato de existirem poucos estudos sobre essa coleção
contribui para a percepção de ideias e valores que, para além da materialidade
dos objetos expostos e da própria imagem, sublinham possíveis aspectos da
mentalidade, das narrativas instituídas pelo folclorista. Para uma melhor
apresentação, as imagens aqui divulgadas foram organizadas seguindo as
propostas criadas pelo próprio colecionador, quando o mesmo diz, em legenda,
que se trata de determinadas coleções.
Na imagem representativa da Seção de Artesanato (Figura 1),
é possível perceber expostos o artesanato sergipano, a Bandeira Nacional da
República Portuguesa de 1910 e a Bandeira Nacional do Brasil, sugerindo uma
formação de painel, um mural, articulador da cultura local/nacional e da
cultura luso-brasileira. É provável que essa foto tenha sido tirada durante a
década de 1940, quando a política em prol de uma nacionalidade brasileira se
dava a partir das influências dos povos, das diversas culturas. Essa apresentação
por meio de navios e caravelas, da cruz de malta, pode remeter a uma narrativa
onde o artesanato sergipano é visto pelo olhar do colonizador, pelo referencial
luso-brasileiro. Garcez, como herdeiro de uma aristocracia, pode ter sido
influenciado por um discurso onde a seleção de inúmeros objetos apresenta a
cultura sergipana nos seus saberes, tendo o artesanato sergipano, os chapéus de
couro e palha, quadros e outros objetos uma visão onde arte e tradição eram
traduzidas na ideia do artesanato enquanto elemento de uma referência
colonizadora, difundindo o culto ao herói colonizador.
Sendo assim, provavelmente, a realização do museu e a forma
de classificação de sua coleção viriam a integrar um discurso de brasilidade
construído através da diversidade cultural de cada região, evidenciando as
particularidades de cada espaço que legitimariam a nação como um todo. O
movimento regionalista, que contou com vários seguidores entre artistas e
literatos, desempenhou um papel significativo para a construção dessa
brasilidade, permeado por uma narrativa de preservação de fatos e signos, e
pela memória de determinados grupos sociais.
Esse pensamento dialoga com o trabalho do historiador
Albuquerque Júnior (2013), ao problematizar a fabricação do Nordeste. Segundo o
autor, o sistema republicano apresenta para as elites políticas e intelectuais
o trabalho de refletir sobre o que é do ‘povo’, bem como dirigir ações e
discursos para este. Dessa forma, a percepção do outro se faz presente pela
diferença, dando margem ao que viria a ser denominado de ‘estudos de folclore
ou cultura popular’2.
O jornal O Tempo, da cidade de São Paulo, em 14 de agosto de
1953, sob título “Cria forças em Aracaju, ressurgimento cultural: novos
escritores no estado mirim”, noticiava a criação do Museu Sergipano de Arte e
Tradição como parte de um ressurgimento cultural da capital. Segundo o jornal,
uma das inciativas era a coleção particular ligada ao “nome incansável [de]
José Augusto Garcez”, realizando uma descrição desse espaço museológico a
partir da fala do folclorista Luís da Câmara Cascudo:
Sobre este Museu, transcrevo uma opinião do ilustre escritor
Luiz Câmara Cascudo, um grande amigo das coisas de espírito sergipano. O museu
dará a visão panorâmica do esforço sergipano de acomodação e vitória sobre a
terra, instrumento de caça e pesca, cesteira, a arte linda dos oleiros, artefatos
de couro, a documentária do ciclo do gado, rendas, enfeites pessoais, decoração
dos ambientes coletivos, tudo quanto possa testemunhar em sua simplicidade
honesta e clara a vida atual do trabalhador sergipano de ambos os sexos. Não é,
visivelmente, uma galeria etnográfica ou de antropologia cultural. Antes
positiva aos olhos dos estudiosos como vive e reside, perpetuando-se no tempo o
sergipano em todos os seus labores cotidianos e normais.
(Cria..., 1953, p. 9).
Entre as inúmeras correspondências trocadas por Garcez com
intelectuais de diversas áreas do saber e regiões, chama atenção a
correspondência com o folclorista Luís da Câmara Cascudo, quando a este é feita
uma observação sugestiva de suas práticas museológicas em Sergipe. Segundo
Cascudo, era preciso criar uma “[...] exposição da arte nos seus processos
evolutivos, a expressão artística das nossas tradições estruturada e
generalizada apenas na ambiência popular: indumentária, arte popular,
artesanato, peças do ciclo do couro etc.” (In: Garcez, 1958, p. 62-23).
Dessa forma, é possível avaliar que, para o folclorista, era
necessário um espaço onde pudesse ser criado um museu de artes representadas
nas suas variadas formas, no sentido folclórico. Isso se torna relevante
quando, através dos registros fotográficos, evidenciou a exposição das artes
populares em ângulos diferentes do mesmo espaço (Figuras 2 e 3). Nas imagens, é
possível perceber a notoriedade do universo da pecuária como referência
representativa da arte popular sergipana.
Em grande parte da historiografia sergipana, a pecuária
adquiriu espaço de legitimidade na economia local, juntamente com a
cana-de-açúcar (Leal Diniz, 2013). Lugar de grandes pastos, Sergipe destacou-se
na pecuária, fator relevante, visto que é possível perceber o entendimento de
arte popular no tocante a objetos representativos do ‘povo sergipano’, a
presença desse universo com imagens de bois em argila destacando-se na
exposição, bem como a própria força que a figura do boi tem nas expressões
populares, como os reisados, bumba-meu-boi, o próprio couro, o cangaço e o
sertão.
Nesse caso, ainda que de forma hipotética, o entendimento de
arte popular em Sergipe, através da materialidade exposta, elementos do cangaço
na parede, miniaturas de representações de bovinos em argila, uma ossada de boi
com chifres, dialoga com uma ideia de arte que representa uma cultura
sertaneja. Na busca por um olhar voltado para a cultura mais próxima às raízes
do ‘povo brasileiro’, nesse caso o sergipano, o sertanejo, a pecuária ganha
centralidade nos discursos de um artesanato deste local.
É possível visualizar a presença de vários elementos
culturais que remetem a um paradigma evolucionista, a partir do olhar de
alteridade de uma antropologia do século XIX, que representa essa prática
etnográfica nos estudos em Sergipe (Figura 3). O museu, nesse caso, seria mais
um abrigo de coleções ‘exóticas’ que, organizadas museograficamente,
(re)apresentaria a evolução do ‘povo sergipano’, a ‘sergipanidade’ sendo
imaginada a partir de uma narrativa onde a referência da antropologia biológica
nos museus do século XIX fundamentava esse espaço.
O museu que seu criador apresentava como sendo de vocação
educativa, provavelmente tinha sua exposição vinculada a uma grade curricular
de estudos primários e/ou secundários com assuntos que versam sobre essa
temática. Talvez servisse não de laboratório de pesquisa e de estudos, como os
museus de ciências no século XIX, mas como espaço de informação, onde, através
dos objetos e das narrativas atribuídas a estes, complementasse o ensino
ministrado em Sergipe, atentando para as possíveis peculiaridades da cultura
sergipana.
Os registros publicados pelo próprio Garcez tornam-se uma
fonte de análise fundamental para perceber como o discurso narrativo, através
de arranjos de objetos coletados, preservados, classificados e expostos,
apresenta um pensamento de uma época sob determinadas categorias como
etnográfica, antropologia cultural, arte popular, artesanato etc. Influenciado
por debates científicos que circundavam o estudo do folclore e da antropologia
enquanto ‘verdadeira’ ciência do homem, Garcez defende que o folclore é uma
fase inicial de qualquer estudo, com seus métodos e técnicas nas diferentes
áreas. Na prática, as classificações de áreas não eram bem evidenciadas na
exposição, é possível que o mesmo mediasse a sua coleção sem se preocupar com
conceitos científicos, mas a partir de uma narrativa histórica.
As análises desses registros demonstram que a construção das
seções expositivas segue uma narrativa contínua, onde a apresentação dos
objetos classificados difundia determinadas ideias sobre os fazeres culturais
sergipanos. Saberes em diálogo com referências da antropologia do século XIX,
reforçando o lugar naturalizado do índio, a partir de um olhar exótico, bem
como o lugar do negro e as referências de uma ‘tradição sergipana’, formulada a
partir da junção das três raças, proposta construída a partir do pensamento
influenciado pelos folcloristas no início do século XX. Assim, na qualidade de
classificar as referências do ‘povo’, nesse caso do ‘sergipano’, de uma
‘cultura sergipana’ e sua representatividade cultural, é provável que o
pensamento defendido por Garcez quanto à formação de sua coleção dialogue com
uma prática na qual o uso da categoria popular e suas classificações
silenciavam as relações sociais destes. Vale ressaltar que, nesse contexto, o
uso das expressões ‘povo’ e ‘popular’ está dirigido para camada social
desfavorecida, seja no sentido de capital cultural seja no de capital
econômico. Portanto, o museu seria um espaço onde essa população homogeneizada
teria acesso à cultura, à arte e ao mundo dos museus. Desse modo, o ato
colecionista e sua exposição consistem em uma (re)significação dos elementos
culturais, que traz artefatos representativos do ‘povo’ classificados e
(re)classificados por uma política de representação. As expressões culturais
daqueles que o nomeiam, que o criam, passam a ser registradas como arte
popular, resultante de um “[...] deslocamento de sentido, inclusive, de lugar
de inscrição para serem vistos e ditos como folclore ou cultura nordestina”
(Albuquerque Júnior, 2013, p. 29).
No Museu Sergipano de Arte e Tradição, por meio dos
registros imagéticos, e nos textos sobre o modo como as exposições foram
montadas, é possível identificar, entre outras coisas, aquilo que Albuquerque
Júnior (2013) denominou de ‘museu de tudo’, lugar onde os fragmentos ilógicos
ganham uma coerência, selecionados entre variedade de formas e materiais de
expressão de um ‘povo’, os quais foram e são produzidos e reproduzidos,
mediando tempo e espaço de representação da ‘tradição do povo sergipano’.
Para Bourdieu, uma das propriedades do campo de produção
cultural “[...] reside no fato de os atos que nele se realizam e de produtos
que nele se produzem conterem [na] prática (por vezes explícitas) a história do
campo” (Bourdieu, 1983b, p. 228). Nesse caso, é possível reconhecer que as
práticas executadas por Garcez reverberavam fatos correspondentes à própria
história do campo em que estava inserido. Portanto, evidencia a literatura no
folclore que Garcez reinventa como literatura falada na rádio difusora,
inovando na construção do consumo deste e na invenção de uma coleção
classificada na sua materialidade enquanto face representativa de um folclore
sergipano. Logo, é possível perceber que, em Sergipe, a história do campo do
folclore se dava a partir da literatura, da prosa, dos contos e dos causos. Assim,
é possível que na ‘imaginação museal’ de José Augusto Garcez haja um discurso
sobre folclore inédito no estado, no que tange à classificação de objetos
atrelados ao conceito de arte e tradição e, principalmente, face ao conceito de
arte no singular. Para Garcez, a arte popular era vista como uma subclasse
agrupada ao seu entendimento de folclore enquanto ciência. O folclore, por meio
do estudo de várias disciplinas do saber, materializaria distintas temáticas
sobre o estado de Sergipe.
Sob influência dos museus alemães, entendendo-se como ‘museu
misto’, o Museu Sergipano de Arte e Tradição responde, em seu aglomerado de
objetos distintos, a uma ideia de classes e subclasses de estudo do folclore, o
que talvez se justifique quando sugere que o museu devia priorizar a arte em
seu ‘processo evolutivo’. É possível atestar que, no pensamento de Garcez, o
folclore se fazia enquanto área que se materializa através da crença nos
objetos do homem, as distintas áreas do saber através do processo educativo.
Diante desse fato, o folclore, no tocante à sua prática museal, se encaixa como
espaço que, através de uma técnica amparada aos moldes modernos, daria conta de
perceber a ‘evolução’ do homem nas diversas práticas da sua história,
instituindo um ‘museu misto’, onde a diversidade das peças, biblioteca, arquivo
de pesquisa, editora e rádio difusora movimentavam o campo cultural, atribuindo
caráter dinâmico, mostrando o passado para fabricação ou reinvenção do
presente. O saber que pode ser aprendido a partir do objeto dependeria da área
de estudo de interesse (história, geografia, arte, arte popular, paleontologia
etc.) inserida na exposição; e isso explica a própria mudança de objetos que
Garcez manipulava, reinventando sentidos.
1“Existentes por toda a Europa, durante os séculos XVI e
XVII, coleções de objetos raros ou curiosos receberam o nome de Gabinetes de
Curiosidades ou Câmaras de Maravilhas, em alemão Kunst und Wunderkammer.Pomian
(1982), no texto “La culture de la Curiosité”, conta que existiram centenas, senão
milhares, de gabinetes pela Europa, neste período, mantidos por príncipes ou
casas reais, humanistas, artistas ou ricos burgueses; elementos representantes
da cultura erudita interessada em conhecer e colecionar o mundo que os cercava”
(Raffaini, 1993, p. 159).
2Surgem, nesse momento, diversas disputas entre folcloristas
e antropólogos em torno da legitimidade do fato folclórico: “[...] um dos
trabalhos mais abrangente relativos à antropologia brasileira é um roteiro
bibliográfico elaborado por Melatti (1984), onde podemos encontrar uma
referência aos estudos de folclore. Ela aparece em subitem intitulado ‘A
abordagem funcionalista do folclore’, que registra a polêmica provocada pela
negativa de Florestan Fernandes em reconhecer nos estudos de folclore uma
ciência social, despertando repostas de Edison Carneiro. Ao descrevê-la, os
folcloristas anteriores a esses dois autores são caracterizados como produtores
de trabalhos, em sua maioria, de mero ‘caráter descritivo’, que ‘quando chegam
à interpretação’, tenderiam ‘a tomar um cunho difusionista’” (Vilhena, 1997, p.
60).
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Recebido: 08 de Janeiro de 2018; Aceito: 13 de Março de 2019
BRITTO, Clovis Carvalho; SOUZA, Jean Costa. ‘Ideias em
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de Arte e Tradição (1948). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências
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http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222019000300016.
Autor para correspondência: Clovis Carvalho Britto.
Universidade de Brasília. Faculdade de Ciência da Informação. Campus Darcy
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meu tio,meu amigo,apaixonado pela cultura,poeta,museuologo,pessoa formidavel,faz-me sentir saudades.
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