quarta-feira, 17 de junho de 2015

Estância: do rastro de fogo ao batuque das pisadas


Patrimônio Cultural Imaterial de Sergipe, 
o barco de fogo é objeto de competição em Estância 

Publicado originalmente no site do "Jornal do Dia", em 14/06/2015.

Estância: do rastro de fogo ao batuque das pisadas.
Por ASN

Um rastro de fogo rasga a escuridão, enquanto tamancos estalam no chão e faíscas duelam no salão. Assim é Estância, no mês de um dos festejos mais esperados do ano, o São João. Com uma cidade cenográfica montada em praça pública, bandeirolas coloridas que contrastam com o azul do céu, e barracões de produção de buscapés e espadas, o município berço da cultura sergipana segue com sua tradição.

No mês de junho é quando acontece a comemoração da festa caipira, porém, para que tudo saia como manda o figurino, os moradores de Estância começam a preparação muito antes. A cidade vira polo de produção de artefatos de pólvora, vestidos juninos, licores, comidas típicas, e a economia também se movimenta em torno das apresentações de shows musicais.

Quem chega a Estância vê guerras e armas de fogo, mas não dessas que marcam as histórias de conflitos mundiais. No município do sul sergipano tudo não passa de uma brincadeira, na qual, munidos de buscapés e espadas, homens e mulheres saem às ruas para duelar e soltar no ar os artefatos que riscam com faíscas o território do interior.

Na arena de competições, barcos de fogo saem em uma corrida esfuziante. Enfeitados com mini bandeirolas e papel laminado, eles são impulsionados pelas explosões da pólvora concentrada em espadas, estrategicamente colocadas nas extremidades dos barcos.

Em outro ponto da cidade, em resposta ao batuque dos tambores, soam as pisadas dos tamancos. A Batucada segue com o balançar dos vestidos e o cantar dos repentistas, que entoam versos da cultura popular.

A alegria dos quadrilheiros também marca ponto no São João estanciano. Vestidos com babados, chapéus caipiras e chinelos de couro, chamados priquitinhas, são as vestes oficiais. Com passos bem ensaiados, bailarinos seguem dançando em pares e em ritmo animado. Anarriê e alavantu são as palavras de ordem do marcador, que comanda a moçada.

A cultura junina em Estância.

"Estância traz para Sergipe a valorização de seus potenciais culturais, que têm como essência variantes como Batucada, quadrilhas e fogueteiros". É isso que afirma Newiton dos Santos, secretário de Cultura, Juventude e Desporto do município. De acordo com ele, a cidade sempre foi marcada por festas juninas nas portas das residências, com direito a fogueiras, brincadeira de corrida de saco, quebra bote e pau de sebo. A presença de sanfoneiros também era constante, e a vizinhaça se reunia em confraternizações que duravam toda a noite.

Telas faziam a segurança de portas e janelas das casas. Tudo isso por conta da soltura de espadas e buscapés, que acontecia a vontade pelas ruas do município. Porém, Newiton conta que esta tradição precisou ser alterada, por conta do uso de vidros na construção e reforma das residências e por medidas de segurança. Atualmente a soltura é permitida na área do forródromo. Mas, para relembrar os velhos tempos, a população tomou uma decisão, contada pelo secretário de cultura.

O estalar das faíscas.

Pega o bambu, seca, cozinha as tabocas [pedaços] e enxuga. Enrola a parte externa com cordão, coloca barro e pólvora, compacta e pronto. Esse é o resumo do passo a passo de produção de buscapés e espadas. O processo de criação tem várias etapas e, segundo o fogueteiro Jorgivaldo dos Santos, há uma diferença primordial na criação dos artefatos: o buscapé tem o fundo fechado e possui pólvora de estouro. Com relação ao uso, enquanto a espada pode ser manuseada, o buscapé, após ser aceso, rodopia sozinho pelo ar.

Os artefatos de pólvora começam a ser produzidos em dezembro, segundo conta o fogueteiro. Ele informa que em sua barraca, onde também atuam o irmão e o cunhado, são produzidos cerca de 12 mil fogos por ano. O faturamento anual gira em torno de R$ 11 mil.

Rastro de fogo.

Patrimônio Cultural Imaterial de Sergipe, o barco de fogo é objeto de competição em Estância. No mês de junho, uma acirrada disputa movimenta a programação festiva. De acordo com Newiton dos Santos, a avaliação dos jurados é feita com base em três requisitos: beleza, criatividade e se o barco cumpre corretamente o percurso. O secretário explica que a alegoria, através de um fio de aço, deve seguir de um ponto A até um ponto B e voltar até a área de partida.

"Atualmente, já temos barcos de fogo que vão e voltam de frente. Ou seja, já criaram um dispositivo para que barco faça a volta no arame. Tem até gente que inventou variantes do barco, como avião e bicicleta. Para enfeitar, os fogueteiros colocam chuvinhas e ainda pistoletes para estourar e anunciar a saída do barco", informou Newiton. A competição de barco de fogo acontece tradicionalmente em 24 de junho. Já o dia em comemoração é o 11 de junho, quando ocorre o festival em praça pública.

O fogueteiro Jorgivaldo dos Santos diz que 24 de junho é o dia mais bonito do ano, pois é a data da competição de barcos de fogo. "Todos os anos eu coloco barco na corrida. Fico ansioso e orgulhoso em ver o povo aplaudindo essa arte, pois não é todo mundo que pode ter acesso. Também me sinto feliz, e o que importa para mim é ver o barco em alta velocidade", relatou. Sobre a tradição, Jorgivaldo é enfático: "a cultura do barco não pode acabar, pois representa a cultura de nosso estado".

No batuque das pisadas.

A brincadeira conhecida como pisa pólvora lembra a confecção de espadas e buscapés. De acordo com Josefa Dias Assunção, conhecida em Estância como Dona Zefinha, a Batucada começou quando alguns homens cantavam e dançavam em volta do pilão, e um grupo de mulheres resolveu se juntar com a batucada. Daí em diante, a manifestação cultural ganhou forma e hoje as apresentações acontecem durante os festejos juninos.

Para marcar a batida dos pés no chão, as mulheres usam tamancos de madeira sucupira que, segundo D. Zefinha, não lasca e produz um bom som. As coreografias têm dois tipos de passos. "Os bonecos vão à frente do grupo da Batucada. Eles dançam igual aos outros integrantes. As músicas são entoadas através de tambores, pandeiros e ganzás [chocalhos]. E o principal da nossa brincadeira é a marcação", explicou, acrescentando que o grupo pode se apresentar em forma de cortejo ou em local específico.

O grupo Busca-pé de Dona Zefinha foi fundado em 1985 e é um dos mais antigos de Estância. São 30 anos de tradição na cidade do sul sergipano. De acordo com Josefa, a melhor parte dessa manifestação cultural é o estalar dos tamancos no solo. "Acho bonito, sinto prazer e adoro", comentou, acrescentando que, junto com ela brincam também membros de sua família.

E é em volta dessas produções populares que o município de Estância mantém, ano após ano, a tradição junina. A cidade se reveste de cores, texturas e detalhes que levam os brincantes a viver a cultura do São João em sua forma mais simples.

Texto e imagem reproduzidos do site: jornaldodiase.com.br

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