Publicado originalmente no site Geledes, em 24/10/2009.
Severo D’Acelino e a produção textual afro-brasileira.
in: Afro-brasileiros e suas lutas.
Por Rosemere Ferreira da Silva*
Resumo:
O artigo em questão procura discutir, sob o ponto de vista
de formação da literatura afro-brasileira, a produção cultural e textual do
intelectual Severo D’Acelino na contemporaneidade. De que maneira, os textos de
Severo podem ser lidos e relacionados às discussões que envolvem a participação
de afro -descendentes na sociedade brasileira? Parte, do perfil biográfico do
escritor, foi traçada para que o leitor conheça a sua trajetória de formação
intelectual e de intervenções nas atividades culturais em Sergipe. A discussão
sobre as atuações do intelectual hoje procura levantar questionamentos,
principalmente, sobre: Que papel o intelectual assume na sociedade
contemporânea como articulador da cultura? Quais são os dilemas do intelectual
na sua política de cultura em relação ao poder hegemônico no Brasil?
Uma leitura crítica da poética de Severo D’Acelino busca
relações crítico -literárias com outros escritores da literatura
afro-brasileira. E a publicação do jornal Identidades é destacada, com o
objetivo de problematizar as discussões em torno das questões sociais,
culturais e políticas que envolvem a afro-descendência no Estado.
A produção cultural do escritor Severo D’Acelino em Sergipe
está voltada para a discussão da afro-descendência como uma das principais
formas de questionamento, na sociedade contemporânea, que envolve a
participação direta de afro -descendentes nos mais diferentes setores sociais
do Estado. A poesia escrita por D’Acelino bem como os artigos publicados e os
projetos educacionais coordenados pelo escritor refletem uma preocupação
constante em educar os sergipanos na direção de uma cultura produzida para
marcar a importância da literatura afro-brasileira como um lugar de expressão
significativo que problematiza as hierarquias sociais construídas, as relações
de poder disseminadas socialmente, a formação de identidades, o combate ao
preconceito e a discriminação racial e de gênero e ainda, a valorização da auto
-estima como principal ponto de partida na luta contra a formulação de estereótipos.
O trabalho de Severo D’Acelino começa em fins da década de
60 do século XX, mais precisamente em 68, no Estado de Sergipe e na Bahia com o
seu envolvimento na militância do Movimento Negro e em atividades teatrais, o
que acabou rendendo -lhe participações em dois filmes: Chico Rei e Espelho
D’Água e no seriado Teresa Batista Suas atividades culturais sempre estiveram
ligadas à Casa de Cultura Afro-Sergipana, Instituição comprometida com as representações culturais e
sociais da afro -descendência no Estado. Durante quase 40 anos de trabalho em
torno das questões sociais, políticas e educacionais direcionadas à causa do
negro, Severo publicou em 2002, apenas um livro de poemas, Panáfrica África Iya
N’la e editou de 2001 a 2002 o jornal Identidades, considerado um dos
principais veículos de comunicação pensado para incentivar o intercâmbio de
idéias entre a comunidade e o poder público em Sergipe.
O jornal tratava de informar a população sobre um conteúdo,
cuja abordagem não observamos nas edições dos jornais convencionais. A leitura
da afro -descendência em Sergipe, associada ao cenário das discussões nacionais
sobre as populações minoritárias, era mediada pelo trabalho de pesquisadores
sergipanos e de outros estados do país. O Identidades constituía, desta forma,
um fórum riquíssimo de debates entre intelectuais, população e alguns segmentos de poder no
Estado. Em 2004, Severo D’Acelino coordenou o projeto “João Mulungu vai às
Escolas”, com auxílio da Lei 10.639, destinado a discutir nas escolas públicas
a inserção do afro -descendente na sociedade sergipana, através do exercício da
cidadania de uma comunidade, que busca uma articulação de cultura negra
fundamentada na discussão da questão étnico -racial, como prioritária no que
entendemos como cultura afro -brasileira. Atualmente Severo se dedica a
escrever o seu segundo livro de poemas chamado Quelóide.
Pelas pesquisas realizadas em arquivos, através de
levantamento de fontes bibliográficas, entrevistas, leituras, empreitadas em
bibliotecas, livrarias e principalmente discussões em torno da questão da
formação de identidades do afro -descendente em Sergipe, tenho convicção de que
só podemos nos referir a uma produção literária, intelectual e cultural voltada
para uma inserção e um diálogo com a formação da literatura afro-brasileira em
Sergipe, a partir do trabalho realizado por Severo D’Acelino.
No estudo realizado da historiografia da literat ura
sergipana, escrita por Jackson da Silva Lima1, há registro de poetas que
contribuíram literariamente apenas por usarem a temática do negro como um
elemento de referência. Estes textos foram escritos no século XIX e a forma de
abordagem do negro geralmente se debruçava sobre o lamento, o pranto, a lamúria
da escravidão, a escravidão como castigo, a saudade dos negros escravizados de
sua terra natal, a exploração da sexualidade da negra escravizada, o ímpeto
pela defesa da abolição, marcados à distância p ela observação de um olhar do
poeta deste século praticamente externo a toda essa problemática.
Os autores sergipanos citados por Jackson da Silva Lima são:
Moniz de Souza, Constantino Gomes, Pedro Calasans, Bittencourt Sampaio,
Oliveira Campos, Tobias Barreto, Silvio Romero, Severino Cardoso, Jason
Valadão, Alves Machado, Antônio Diniz Barreto e Prado Sampaio. Os textos desses
poetas ou estão compilados na História da Literatura Sergipana ou em Os
Palmares Zumbi & Outros textos sobre a escravidão . O primeiro publicado em dois volumes em 1986 e o segundo em
1995. A história da literatura sergipana não abrange textos contemporâneos. Ou
seja, falta a esta história uma leitura mais significativa sobre o modo de
representação do afro -descendente sob o ponto de vista de formação de uma
identidade cultural.
Não posso falar em literatura afro-brasileira em Sergipe sem
antes voltar a estes escritores para mostrar que não houve, ainda que
superficialmente, uma continuidade de escrita historiográfica sobre um contexto
de abordagem que envolva o negro/ o afro – descendente. Observo que existe um
espaço vazio entre os textos desses escritores do século XIX e a literatura
afro-brasileira que veio a fortalecer-se no século XX. Não considero que os
textos dos autores citado satisfaçam um estudo mais representativo da 1 LIMA,
1996
“presença” do negro na literatura, como muitos críticos
denominam. São escritos concentrados num contexto político, histórico, social e
cultural totalmente de desvantagens à leitura do afro-descendente como parte de
uma identidade nacional.
Esses textos são fundamentais para a historiografia
literária, mas não atendem a leitura de representações literárias voltadas para
o estudo da literatura como produção cultural realizada em Sergipe, cuja
abordagem esteja destinada a discutir questões relativas à preservação da
cultura negra no Estado e, ainda a levantar problemas sobre a participação mais
direta do afro-descendente no processo sócio-cultural, político e econômico, de modo que as diferenças étnico -raciais sejam
percebidas como necessárias ao reconhecimento de uma sociedade multicultural.
Já no século XX, identifiquei na literatura sergipana alguns
poetas que continuaram a escrever sobre a temática do negro, a exemplo: João
Silva Franco (o João Sapateiro) e Santo Souza. A produção literária deles,
embora mais crítica e mais de acordo com os questionamentos sociais trazidos
pelas representações contemporâneas de afro-descendentes, ainda não abarcam uma
leitura que discuta as relações étnico – raciais dentro do processo de
formulação da identidade afro-brasileira em Sergipe.
Para falarmos de literatura afro-brasileira, de suas
articulações de sentido com a literatura brasileira, da maneira como alguns
conceitos e determinadas leituras foram ressignificadas neste universo de
construções e desconstruções da imagem do afro – brasileiro na sociedade
contemporânea, é necessário nomearmos as produções culturais e literárias que
buscaram na própria polêmica sobre a existência de uma literatura negra dar
visibilidade cultural e política a uma comunidade, até então, supostamente
representada por alguns discursos legitimados socialmente. A forma como esses
discursos eram “autorizados” pelo poder de uma hegemonia cultural branca,
fixada em bases ocidentais, excluía toda e qualquer tentativa de manifestações
culturais e literárias que tendessem a buscar na nossa herança africana
elementos da história e da memória de afro-descendentes ou ainda a trabalhar a
própria representação do negro a partir de um contexto de valorização de suas
contribuições à nação brasileira.
Da década de 70 do século XX para cá, com a abertura da
democracia no Brasil e conseqüentemente com os olhos voltados para um contexto
político e cultural mais suscetível a questionamentos, os intelectuais afro
-brasileiros buscam no país um espaço de expressão voltado para uma
representação de valorização da cultura negra nas discussões sobre cultura,
expressões artísticas, comunicação e formação de identidades.
A dinâmica das trocas culturais2 baseadas na negociação dos
contatos culturais entre negros, brancos e índios, traduziriam alterações
significativas no processo civilizatório ocidental.
A proposta da intelectualidade negra era de pensar a
articulação da cultura negra, na sua forma de comunicação com a literatura, a
partir da revisão historiográfica do ser negro no Brasil. Estabelecer uma
problematização mais intensa da participação do afro-descendente na sociedade
brasileira dependia da releitura e da desconstrução das antigas representações
destes sujeitos sociais, construídas sob uma forma de poder hegemônico, que
sempre excluiu as expressões minoritárias inviabilizando o reconhecimento
social, político e cultural da diferença.
Ao assumir a condição de um “enunciador”, o escritor afro
-descendente desestabilizou as bases da tradição literária brasileira,
acostumada a ver o negro num lugar marcado pela condição inferior, subalterna a
ele atribuída. A condição de negro no discurso da enunciação, fez com que o
escritor afro -descendente trouxesse para o campo de análise teórica um discurso
que problematiza os anseios e angústias de uma coletividade. E que leva o
sentimento coletivo a reconhecer a sua total e plena condição de assumir papéis
sociais mais definidores do ser negro na sociedade contemporânea, completamente
diferente daqueles “naturalizados” pelo discurso colonial.
Foi possível abrir, através da proposta diferenciada dos
estudos sobre cultura, mais especificamente a dos Estudos Culturais, um espaço
de diálogo entre o que já consideramos literatura afro-brasileira e as produções
culturais levantadas mais contemporaneamente em estados distintos do Brasil. Isso reforça a ideia de
que a cultura pode e deve ser entendida a partir das tensões criadas pelo
conhecimento, nas suas múltiplas influências ideológicas com o saber cultural em
processo, como afirma Florentina da Silva Souza:
Efetivam-se trânsitos e intercâmbios entre os conceitos
construídos pelos escritores negros (na verdade pelos movimentos negros) e
aqueles gerados pelos estudos e reflexões acadêmicas . Trocas marcadas pelo
fato de, mais intensamente a partir dos fins da década de oitenta, crescer o
número de afro -descendentes que investem nas pesquisas e estudos sobre
cultura, tradição e história afro -brasileira.
Sem assumir qualquer posição essencialista, acredito que o
fato de disputarmos posição de sujeitos e objetos dos estudos introduz uma
outra perspectiva de análise da questão racial no universo acadêmico e
enriquece a produção de reflexões e estudos sobre a questão racial no 2
SANTIAGO, 1998, p. 16 Brasil. Por outro lado, penso também que a proliferação
de entidades e grupos negros no País nas últimas décadas evidentemente que
aliada a outros fatores, muito contribuiu para a inserção do tema na agenda
acadêmica e nas discussões políticas.
Considero literatura afro-brasileira toda produção cultural
voltada para a afirmação de uma identidade negra de inclusão, questionamentos
políticos, auto -estima, em constante tensão com o legado cultural da
literatura instituída sempre em busca de ampliação e renovação de seu campo de
saber através dos diálogos com escritores, intelectuais que pensam suas
atividades culturais como forma constante de preservação cultural afro-brasileira e também de problematização das
forças de poder que são exercidas na marcação de políticas que efetivam a
diferença. A releitura das manifestações populares brasileiras se torna
fundamental para a revisão do conceito de literário.
É neste contexto que o trabalho do intelectual orgânico 4
Severo D’Acelino começa a ser desenvolvido em Sergipe com o propósito, segundo
ele, de dar visibilidade à cultura negra. Seu trabalho concentra ações
diversificadas em torno da afro – descendência. Diferente de outros escritores
de sua geração no Estado, Severo se projeta para um campo de saber que
movimenta na contemporaneidade não só escritas sobre a temática do negro, mas, sobretudo a discussão pela
participação direta no âmbito das políticas que inserem afro-descendentes no
campo cultural, político e social brasileiro.
Sergipe tem, de acordo com as informações do senso de 2003
realizado pelo IBGE5, um percentual de 68,6 % de afro-descendentes. O município
brasileiro com o maior contingente populacional de afro -descendentes é Nossa
Senhora das Dores com 3 SOUZA, F. 2005, p. 97-98 4 utilizo o conceito de
intelectual orgânico proposto por Gramsci, ou seja, aquele que se coloca a
serviço de classes ou empreendimentos para organizar interesses, disputar e
obter expansão dos espaços de poder.5
Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), “os indicadores, elaborados principalmente a partir dos
resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de D omicílios realizada em 2003,
estão apresentados em tabelas e gráficos, para o Brasil, grandes regiões e unidades
da federação e, para alguns aspectos, também para regiões metropolitanas. A
publicação apresenta um glossário com termos e conceitos considerados
relevantes”. Os percentuais de 68,6% (pardos), 27,4% (branca), 3,8% (preta) e
0,2 (amarela ou indígena) foram retirados da tabela 11.1 – População total e
sua respectiva distribuição percentual, por cor segundo as Grandes Regiões,
Unidades da Federação e Regiões Metropolitanas-2003. O percentual de pardos
está sendo lido aqui como o de afro -descendentes. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/ . Acesso em: 08 de set. de 2005.
98,7%6, sob o ponto de vista proporcional. As cidades de
Monte Alegre, 93,7%, Indiaroba, 89,2% e Pinhão, 89,2% também reúnem uma
população significativa neste sentido. No município de Porto da Folha a
população “sarará” é interpretada como branca, mesmo apresentando
características afro-brasileiras. Gilberto Gil na letra da música Sarará Miolo
define o que vem a ser sarará: “como doença de branco, de querer cabelo liso,
já tendo cabelo louro, cabelo duro é preciso, que é pra ser você crioulo”. 7 O
cabelo duro, na letra da música, é interpretado como uma das marcas
identitárias do afro-brasileiro, ao passo que o cabelo liso seria a reprodução
de uma marca que não é a sua e, sim aquela atribuída por um padrão estabelecido de leitura estética e
social branca. Na verdade, pelo percentual total de afro-descendentes no estado
de Sergipe, percebemos claramente que as cidades do interior influenciam na
leitura da capital como predominantemente branca.
Incoerente pensar que Aracaju seja uma capital branca.
O percentual de brancos em Sergipe é de 27,4%, de pretos,
3,8% e de cor amarela ou indígena é de 0,2%. Se somarmos os números de pardos,
considerados aqui afro -descendentes mais o percentual de pretos, já constatado
pelo IBGE, teríamos um total geral de 71,4% de afro -descendentes. Portanto,
não deveria haver motivos para que a população de afrodescendentes não seja
percebida como um contingente populacional significativo na leitura de
afro-descendência no Estado. Acho que a problemática sobre as relações raciais
em Sergipe tem suas raízes plantadas principalmente nesta leitura mal feita. Os
índices são claros e não deixam dúvidas sobre a caracterização da população
quanto à cor. A política governamental do Estado não é uma política voltada
para os indicadores sociais desta população. O discurso político em Sergipe
fortalece uma identidade e branca, momentânea e que não contribui para que as
diferenças raciais sejam seriamente pensadas.6
Este percentual está baseado em Estudos e Pesquisas/ Nota de
Estudos 02/203 – Ranking dos cem (100) maiores municípios negros do Brasil.
Fonte: Microdados da Amostra de 10% do Censo Demográfico de
2000. Programação: Luiz Marcelo Carvano. Disponível em: http://www.observatórioafrobrasileiro.org.br
. Acesso em: 08 de set. de 2005. 6GIL, Gilberto. Sarará Miolo, Intérprete:
Gilberto Gil. Realce. Warner Music, p. 1979. Faixa 7.
Os versos da letra da música de Gilberto Gil ilustram uma
definição de “sarará” que está diretamente relacionada com a crítica à rejeição
de características que c circulam socialmente como definidoras de um padrão de
beleza estética branco. O “sarará” já traz naturalmente a cor dos cabelos
loura, o que se aproxima desta construção de padronização criada pela
sociedade. Portanto, o “duro” seria enfatizar que o “louro -duro” é a diferença
que existe entre o branco louro de cabelo liso e o branco louro de cabelo duro,
diferença esta que quando assumida reforça muito mais a identidade afro
-brasileira do que uma identidade branca.
O afro-descendente em Sergipe incorpora mais a ideia de ser
branco do que a ideia de não-branco. Mesmo a população do interior do Estado é
levada pelas condições de inferioridade racial, formação de estereótipos e
invisibilidade à política de ações afirmativas, a pensar que um tom de pele
mais claro, ou o cabelo forçosamente liso, embora com características
fenotípicas negras, seja branca.
O discurso da brancura é uma forma de esconder os problemas
étnico -raciais, para que eles não venham à tona como uma problematização que
possa repercutir no que entendemos como diversidade cultural e identidades
múltiplas na formação étnica nacional. As pessoas são levadas a mascarar uma ideia
de “branqueamento” para tentar com isso evitar a exclusão.
Penso a identidade do afro-descendente em Sergipe como um
conceito que opera, como afirma Stuart Hall 8, “sob rasura”. A identidade
cultural na contemporaneidade é estudada como identidades. A pluralidade retira
do conceito a predominância de uma identidade única no reconhecimento da
diferença. O sujeito se percebe socialmente pelo conjunto de identidades que
possui e pela não fixidez da construção do conceito de identidade sob uma
historicidade em processo. As identidades do afro-descendente na contemporaneidade
não podem ser entendidas sem que haja recorrência ao seu passado histórico,
como discute Stuart Hall:
As identidades parecem invocar uma origem que residiria em
passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto,
com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura
para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos.
Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de onde viemos”, mas
muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido
representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios.”9
Não se trata de atribuir culpas pela lentidão do debate racial
em Sergipe, apenas pretendo dizer que a representação do afro -descendente deve
ser reavaliada e que de uma forma muito clara e objetiva políticas devem ser
implementadas para resgatar um pouco da auto-estima e da capacidade de
intervenção social do afro – descendente como sujeito que se pensa como tal.
Por isso, o nome de Severo D’Acelino e seu trabalho desenvolvido tornam-se
importante para o Estado.
8 HALL, 2005, p. 104
9 HALL, op cit, p. 108-109
Severo D’Acelino é o intelectual em Se rgipe que
contemporaneamente vem trabalhando com questões relacionadas com a formação de
identidades, com o combate aos estereótipos, usados na caracterização da
comunidade afro -descendente e denunciando textualmente, seja através de sua
poesia ou de artig os, a necessidade de inclusão social desta população, com as
atividades direcionadas a projetos de uma pedagogia de educação voltada para a
reflexão e para o conhecimento de conteúdos específicos da cultura negra nos
municípios.
Os textos de Severo D’Acelino podem ser lidos como uma
produção da literatura afro-brasileira porque seu conteúdo literário discute a
problemática do ser negro no Brasil. O sujeito negro é colocado em primeiro
plano. Neste sentido, falar do cotidiano desta comunidade acaba sendo o fio
condutor que direciona a organização de sua escrita, objetivando uma expressão
mais definida, do entender -se negro no nosso país.
As experiências vivenciadas como negro estão traduzidas em
cada linha de sua poesia.
Experiências estas que no passado foram menosprezadas por
uma literatura instituída que sempre buscou excluir o afro dos afro
-brasileiros. Não estamos tratando aqui de uma temática, como já estamos
cansados de ouvir. Estamos ampliando nossos conhecimentos, nossos saberes de
uma maneira geral para tratar de uma literatura afrobrasileira.
De uma forma de escrever que procura se despir dos moldes
ortodoxos da nossa língua portuguesa. A qualidade literária da literatura afro
-brasileira não está nas formas rebuscadas de escritas, nas classificações ,
conceituações e etc, ela está concentrada indiscutivelmente na experiência
poética, artística, cultural e política de saberes que representam o
qualificativo afro de afro -descendentes e de afrodescendência no Brasil.
No início do livro Panáfrica África Iya N’la Severo
D’Acelino cria uma certa expectativa em contar uma história de afro
-descendência fragmentada pela dispersão de informações que remetam a
construção de uma trajetória de ascendência africana.
Mesmo sem a recorrência aos documentos, a história a merece
ser contada e remontada com base nos relatos e tradições da ancestralidade
africana que vive, embora modificada na diáspora pela aproximação com a cultura
ocidental, para que o passado possa ser reinventado no presente, através de uma
representaçã o literária que assume a história da cultura afro-brasileira como
um legado de informações que fortalece a identidade afro – brasileira.
Na primeira parte do livro, que corresponde ao primeiro
manifesto, o sentido de “Panáfrica” é de resistência cultural e política. A
resistência da cultura afro -brasileira conseguiu manter as tradições africanas
ressignificadas nos rituais do candomblé, nos enredos das escolas de samba e na
forma de viver dos quilombolas. “Panáfrica” corresponde à preservação de uma
memória pronta a ser ativada na reconstrução do arquivo cultural e humano, no
qual as expectativas do grupo étnico -racial sejam usadas a repercutir uma ideia
de cultura voltada para a visibilidade à diferença.
O poema que abre o primeiro manifesto é “Rito de abertu ra,
saudação a Exu”. O poeta escolhe iniciar suas escritas com este texto, talvez
porque de acordo com a tradição do candomblé no Brasil o Orixá sempre convocado
à abertura dos trabalhos é Exu. Metaforicamente, o Orixá tem a função de abrir
toda reflexão d e “Panáfrica”, e como mensageiro indicar o caminho que os
textos poéticos irão percorrer na sua forma de abordagem da cultura
afro-brasileira em Sergipe.
(…)
O que sempre segue
Na frente e quem primeiro
É servido, Saravá
Leva meus rogos e preces
Ao meu Orixá.
Minhas preces em cantos
E prantos do meu povo
Diasporizando, nesta revisitação
A memória ancestral
Para que nosso pranto e cantos
Sejam a partir de agora
Canções de regozijo pela revisitação
Do meu axé10
(…)
Recorrer à figura de Exu é comum aos es critores
afro-brasileiros para explicar na tradição afro-brasileira a presença do Orixá
como metáfora de atividade crítica da interpretação. Leda Maria Martins, em A
Cena em Sombras, ao explicar o código da duplicidade que instaura o jogo da
aparência e da representação, escolhe Exu como um “operador semântico de
alteridade africana na sua interseção cultural nos Novos Mundos”. Exu, na
leitura de Leda, “é o princípio dinâmico de comunicação e interpretação que se
configura como elemento mediador de sentido” .11
10 D’ACELINO, 2002, p. 74
11 MARTINS, 1995, p. 56-57
Já Henry Louis Gates12 associa o Macaco Significador do
discurso a Exu, figura segundo Gates, trapaceira na mitologia ioruba. As
figuras trapaceiras são “mediadoras” na leitura do autor. Assim como para a
maioria dos escritores afro -brasileiros Exu domina o campo das trapaças, das
ambigüidades, da inversão, do jogo discursivo, sempre brincando com as palavras
e criando imagens, muitas vezes, irônicas do que repete e inverte.
“Aquele que segue na frente e em primeiro lugar”, assim Exu
é definido por D’Acelino. O que segue primeiro é, em consonância com o discurso
dos autores citados, o dono da notícia, da comunicação direta do ato de
comunicar na representação do significado de “Panáfrica”.
A poética de Severo D’Acelino é o esboço de uma literatura
afro -brasileira escrita para ser conhecida como o início de uma “caligrafia”
que pensa o afro – descendente em Sergipe num contexto histórico de
representações que enfatizam a necessidade de reconhecimento e visibilidade
deste grupo étnico-racial. Tradição africana, cultura popular brasileira,
identidade, religiosidade, representações e diferenças étnicas, historicidade, intervenções culturais e políticas
são alguns dos aspectos que podemos levantar através de sua abordagem literária
como forma de problematizar a participação do sergipano, mais especificamente a
do afro -sergipano na vida cultural e política de seu Estado.
É neste contexto do debate político e étnico-racial
contemporâneo que analiso a atuação direta do intelectual Severo D’Acelino em
Sergipe. Destaco seu trabalho como fundamental para pensarmos o diálogo de sua
produção cultural com a de artistas e outros intelectuais da literatura
afro-brasileira. Acredito também que a diversidade do trabalho de Severo tenha
impacto em todos os setores da opinião pública, gerando
polêmica com o poder hegemônico sergipano. Na efetivação de
seu discurso, ele se vale da condição e do papel de intelectual, para criar
estratégias de intervenção na política 12 GATES, 1992, p. 206-207 cultural e,
na estrutura educacional, buscando uma representação do afro-descendente mais
emancipatória, sob o ponto de vista da reconstrução da história e da memória do
afro-descendente em Sergipe em consonância com as leituras da literatura
contemporânea.
*Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos – Universidade
Federal da Bahia
Centro de Estudos Afro-Orientais
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Texto e imagem reproduzidos do site:
geledes.org.br/severo-dacelino-e-a-producao-textual-afro-brasileira
Texto e imagem reproduzidos do site:
geledes.org.br/severo-dacelino-e-a-producao-textual-afro-brasileira
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