Navio Araraquara.
Publicado originalmente no site da Folha de S. Paulo, em
08/07/2007.
O naufrágio do Araraquara.
Relato do oficial da Marinha Mercante Milton Fernandes da
Silva descreve o torpedeamento, o afundamento e a luta pela sobrevivência no
mar de 4 náufragos do Araraquara; dos 142 a bordo,131 morreram.
Por Sérgio Torres*
Escrito há 65 anos pelo oficial da Marinha Mercante Milton
Fernandes da Silva, texto até agora inédito relata o torpedeamento, o
afundamento e a luta pela sobrevivência no mar de quatro náufragos do navio
brasileiro Araraquara, atacado por um submarino alemão na costa de Sergipe na
noite de 15 de agosto de 1942.
Havia a bordo, oficialmente, 142 pessoas. Só 11
sobreviveram, entre elas Silva, o único oficial que conseguiu alcançar a terra.
Ele era o primeiro piloto, terceiro homem na hierarquia de comando da
embarcação.
Os naufrágios do Araraquara e de seis outros barcos
brasileiros entre 15 e 19 de agosto daquele ano, no litoral sergipano e da
Bahia, resultaram em intensa comoção popular e pressão sobre o presidente
Getulio Vargas (1883-1954).
Houve 468 mortos, pelo menos. Nas ruas, nos jornais e nas
rádios de todo o país se exigia um posicionamento duro do governo. Em 31 de
agosto, Getulio declarou guerra à Alemanha, à Itália e ao Japão.
O relato de Silva permaneceu engavetado do dia em que o
escreveu, 15 de setembro de 1942, já de volta ao Rio, a pouco antes de sua
morte, em 1994, aos 78 anos. Adoentado, ele xerocou o relatório de quatro
páginas datilografadas, recortes de jornais da época e papéis sobre o caso.
Fez quatro dossiês e os entregou às filhas, Vera, Lúcia e
Altair Maria, e ao filho, João Luiz.
É um documento rico em informações e sem sentimentalismos.
Aos 27 anos, o primeiro piloto relata o momento em que o Araraquara foi
atingido duas vezes por torpedos de um submarino (mais tarde identificado como
o U-507, da Marinha alemã), o tumulto a bordo, as pessoas atirando-se à água, o
naufrágio. Conta como conseguiu agarrar-se a tábuas e como resgatou três
sobreviventes.
O oficial descreve o que se passou durante os dois dias em
que flutuou no mar. Como dois náufragos se desesperaram e morreram afogados.
Como ocorreu a chegada à terra, a nado, já que as tábuas foram destruídas pelas
ondas.
E, ainda, a caminhada da praia aonde chegaram até o socorro
em uma fazenda. Por fim, narra o atendimento hospitalar e a volta ao Rio, onde
morava.
Navio misto (passageiros e carga) da empresa Lloyd Nacional,
o Araraquara zarpou do Rio em 11 de agosto, rumo a Cabedelo (PB), com escalas
em Salvador, Maceió e Recife. Cronologicamente, assim começa o relato do
primeiro piloto.
Segundo ele, havia a bordo 177 pessoas (81 tripulantes e 96
passageiros). A informação diverge do divulgado pelo governo à época, de que o
navio carregava 142 pessoas. Erro que pode ter sido premeditado, na tentativa
governamental de reduzir o impacto da tragédia. Os números oficiais foram divulgados
pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), criado três anos antes para
censurar a imprensa e que, conforme historiadores, manipulava o noticiário.
"Estampido seco".
O texto relata que às 21h do dia 15, perto de Aracaju,
"com o clarão da mesma à vista", o Araraquara foi atingido pelo
primeiro torpedo. "Eu dormia no meu camarote quando fui despertado por um
estampido seco, seguido de estremecimento do navio", contou ele. O segundo
torpedo pegou o navio "aproximadamente um minuto" depois.
"Ordenei então aos passageiros, que estavam
desorientados, que fossem para o outro bordo, e procurassem salvar-se da melhor
maneira possível", escreveu a respeito da inclinação do navio, do sumiço
dos botes e do iminente afundamento.
O oficial passa então a narrar o que fez para salvar-se.
Primeiramente, atirou-se ao mar, "certo de que seria impossível"
sobreviver. A seguir, nadou "auxiliado pelos vagalhões". Depois,
assistiu ao naufrágio, com o Araraquara "ficando completamente em pé e
desaparecendo".
Silva relata ter sido puxado pelo vácuo da embarcação indo
ao fundo, mas que, mesmo bebendo bastante água salgada misturada a óleo e
recebendo pancadas de destroços, conseguiu voltar à tona, onde se segurou a um
pedaço de madeira que boiava.
Sobre a madeira, ele recolheu o maquinista Erothildes Bruno
de Barros, 31, o moço de convés Esmerino Elias Siqueira e o passageiro Oswaldo
Costa, tenente do Exército. Ao redor, apanhou destroços que boiavam,
amarrando-os para que formassem uma espécie de jangada improvisada. Ele conta
que o mar "os aproximava cada vez mais para a terra" e que assim se
passaram a noite do dia 15 e todo o dia 16.
"Aproximadamente às 2h do dia 17 o marinheiro
[Siqueira] começou a dar sinais de perturbação mental, pedindo alimento,
dizendo ter ouvido bater a campainha para o café. (...) Em seguida, desesperado
de fome e sede, atirou-se ao mar, sendo impossível qualquer salvação."
O tenente foi o próximo "a demonstrar o mesmo
sintoma". "Tentei acalmá-lo, foi impossível, atirou-se n"água.
(...) Agarrei-o pelas botas, conseguindo colocá-lo novamente sobre as mesmas
[as tábuas]. No entanto, poucos minutos depois, colocando-se numa posição
agressiva, dizendo que eu e meu companheiro estávamos embriagados, (...) fez-se
novamente ao mar, sendo, desta vez, impossível salvá-lo."
O mar levava os náufragos para a praia até que, "ao
clarear do dia", as tábuas foram destruídas pela arrebentação em bancos de
areia. Silva e Barros caíram na água e passaram a nadar. Às 9h, atingiram uma
coroa de pedras.
"Calculando que na preamar [maré alta] talvez não desse
pé na dita coroa, e que estávamos fracos, pois havia 36 horas que não dormíamos
nem nos alimentávamos, convenci meu companheiro de que não devíamos descansar e
sim nadar para a terra, da qual já avistávamos os coqueiros."
Eles alcançaram a praia de Estância (cidade vizinha a
Aracaju) às 15h. "Exausto, deitei-me na areia para dormir, julgando ter
meu companheiro feito o mesmo, quando fui acordado para beber água do coco
verde que ele havia apanhado."
Reanimados, puseram-se a andar, sendo abrigados na fazenda
da Barra, após uma caminhada que Fernandes da Silva estimou em 2,5 léguas
(cerca de 16,5 km). De lá, foram levados para a cidade de São Cristóvão e,
depois, Aracaju.
O oficial permaneceu hospitalizado por dez dias. Enquanto
isso, mais nove náufragos do Araraquara chegaram às praias sergipanas: as
passageiras Eunice Baumann e Alaíde Cavalcante, que perdera marido, três filhos
pequenos e um irmão; o passageiro Caetano Moreira Falcão; e os tripulantes José
Rufino dos Santos, José Alves Melo, José Correia Santos, Francisco José dos
Santos, José Pedro da Costa e Maurício Vital.
* Enviado Espedial a Aracaju/SE.
Texto reproduzido do site folha.uol.com.br/fsp/mais
Muito boa a publicação.
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