quarta-feira, 22 de março de 2017

Praça Fausto Cardoso: Patrimônio Histórico de Aracaju


Publicado originalmente no site da PMA, em 24/03/2010.

Praça Fausto Cardoso: Patrimônio Histórico de Aracaju.
Por Amâncio Cardoso*

Se fosse eleito um núcleo urbano para Aracaju, ele deveria estar inscrito na praça Fausto Cardoso. Ela é uma das primeiras áreas públicas demarcadas pelo engenheiro Pirro em seu desenho fundador da capital, em 1855. Desde os primórdios da cidade que a antiga praça participa da vida aracajuana como um lugar de significativa importância e de diversas funções. Anotemos, assim, algumas histórias que atestam tais qualificações.

Nos idos de 1868, o então presidente da província relatou que aterrara a "Praça de Palácio" para diminuir os pântanos e charcos que alagavam Aracaju. Neste período, onde hoje está a praça, havia um largo de areia em que se situava o primeiro palácio do governo provincial. Daí a expressão "Praça de Palácio" como primeiro topônimo do lugar. Atualmente, onde funcionava o antigo palácio está a Delegacia Fiscal, do Ministério da Fazenda, na esquina da face norte da praça com a rua da Frente. Quanto ao serviço de aterro, informado no documento, era de extrema importância à época, pois se acreditava que as águas estagnadas no areal sofriam evaporação e infectavam o ar, produzindo gases miasmáticos, os quais provocariam doenças epidêmicas.

Desse modo, Aracaju e, especificamente, a antiga praça eram um quadrante encharcado que precisou de muito aterro. Prova disso é o registro de um ilustre visitante de nossa capital, oito anos antes, em 1860, o Imperador D. Pedro II (1825-1891). O monarca assim escreveu sobre os charcos da novel cidade: "botaram terra sobre a areia das ruas: não contavam com a chuva de hoje que formou muita lama." .

Por coincidência, foi na antiga "Praça de Palácio" que se hospedaram o Imperador, a Imperatriz e suas comitivas. Além disso, o desembarque imperial ocorreu "em frente à Praça de Palácio" num atracadouro de madeira, hoje conhecido como Ponte do Imperador, outro marco histórico-arquitetônico contíguo à praça. Sendo assim, enquanto a ponte serviu de portão de entrada para Suas Majestades, o velho largo se prestou como ante-sala. Pois, de seus aposentos, no antigo palácio (hoje Delegacia Fiscal), transformado em Paço Imperial durante a visita, o monarca vislumbrou a praça apinhada de súditos em sua reverência. Até hoje, esta insigne visita marca a memória dos sergipanos, materializada no largo da praça e monumentos contíguos: "ponte" e "palácio" imperiais.

Ainda no século XIX, foram plantadas, no descampado da praça, palmeiras imperiais importadas; talvez para lembrar a visita de D. Pedro II. Este foi o primeiro esforço de arborização em Aracaju, depois complementado com o plantio de oitizeiros e figos-benjamin; trazidos do Horto Florestal do Rio de Janeiro. A importação de árvores exóticas obedecia a um movimento estético das cidades européias, vistas como modelo civilizador.

Exemplo de embelezamento da Fausto Cardoso, com intenções modernizadoras, ocorre no início do século XX, quando são construídos os coretos que até hoje existem. Estes equipamentos arquitetônicos, além de embelezar, intensificavam a sociabilidade, pois ali ocorriam as retretas - apresentações de banda de música em praça pública -; os discursos políticos, que os utilizavam como palanques; e as missas campais. A partir de 1920, ano do centenário da emancipação política de Sergipe, foram construídos também os passeios externos e internos; instalados os postes de iluminação; assentados novos bancos vindos dos Estados Unidos. Por conta disso, o lazer, o civismo e o bem-estar serão novos serviços oferecidos pelo velho largo com seus modernos mobiliários.

Sobre seu nome, a vetusta praça experimentou vários topônimos, além do "Praça de Palácio", já foi chamada "do Imperador"; "da República" e finalmente, em 1910, "Fausto Cardoso". Aliado a este último topônimo, ela recebeu em 1912 outra inovação: a primeira estátua pública de Aracaju. Pois o assassinato de Fausto Cardoso (1864-1906) foi eternizado na memória popular no local em que o deputado e advogado falecera. Assim, praça documenta, desde então, uma das tragédias mais lembradas da história política de Sergipe.

Quanto ao episódio da instalação da estátua, o escritor Genolino Amado (1902-1989), lembra que naquele dia a praça estava numa "aglomeração como nunca se viu". Tanto para cultuar, segundo Amado, o mito político; como para "ver e ouvir" o então afamado magistrado Gumercindo Bessa (1859-1913) em sua última manifestação de eloqüência, pois o orador estanciano raramente saía à rua, muito menos para discursar em praça pública.

Outro memorialista da cidade, Mário Cabral (1914-2009), lembra da praça em um de seus momentos mais significativos em termos estéticos. Admira-se Cabral, em 1948: os "jardins [da Fausto Cardoso] são magníficos. Possui dois coretos monumentais, uma fonte luminosa, além de outras obras de arte". Nesse ambiente agradável, continua o memorialista, "aos domingos e feriados, à tarde e à noite, ao som da música, ora da polícia, ora do exército, as moças e os rapazes fazem o seu desfile de elegância e futilidade". Pelo que indica Cabral, o espaço da praça nestes eventos era dominado pela juventude classe média e/ou abastada que desfrutava de um lugar central e privilegiado para ostentar seus símbolos exteriores de poder social e econômico, tais como carros novos e roupas elegantes durante o "footing" pela bela praça.

Neste período, além dos poucos carros particulares, a Fausto Cardoso era ponto dos "carros de praça" (atuais táxis). Aliás, para o memorialista Fernando Porto (1911-2005), as expressões dicionarizadas no Aurélio "carros de praça" (táxi) e "chofer de praça" (motorista de táxi) teriam sido originadas em alusão aos carros e motoristas estacionados na praça Fausto Cardoso. Segundo outro memorialista de Aracaju, Murilo Melins, em agosto de 1933, "o ponto dos carros de praça foi transferido [da rua de Laranjeiras] para a Praça Fausto Cardoso", que recebeu o nome de "Praça de Carros 131", número de telefone que servia aquele local. Fica patente que os modernos serviços públicos tinham na velha praça seu lugar assegurado. Era e ainda é ponto de referência para todos.

Mas as memórias de Melins registram também outras tragédias de que a praça foi testemunha. A primeira delas diz respeito ao torpedeamento dos navios mercantes na costa sergipana em 1942, durante a 2ª. Guerra Mundial. Da sacada do palácio para o povo assustado na praça, o interventor Augusto Maynard (1886-1957) discursara pedindo "calma, e muita calma" aos sergipanos atônitos. O segundo episódio trágico foi o linchamento do líder trabalhista Lídio Paixão, "próximo à estátua de Fausto Cardoso", durante um ato público no dia do suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954. Como se vê, entre momentos de lazer, festas e romances, a praça parece ter a sina de testemunhar tragédias emblemáticas, como a do personagem que lhe empresta o nome.

No aspecto cultural, uma das manifestações mais tradicionais da religiosidade aracajuana, e que possui íntima relação com a praça Fausto Cardoso, é a procissão de Bom Jesus dos Navegantes, no dia 1º de janeiro. Durante o préstito católico, a praça se torna uma passarela para o embarque e desembarque da charola do Bom Jesus na Ponte do Imperador. Muitas fotografias, tiradas ao longo do século XX, documentam o uso da praça pelos devotos durante a centenária procissão.

No campo político, no entanto, o evento mais marcante, e que teve a praça Fausto Cardoso como palanque, foi o da campanha das "Diretas Já". Este movimento selou o início da derrocada do Regime Militar após vinte anos de ditadura; sem eleições diretas, inclusive para presidente da República. A campanha se espraiou por todo o Brasil na forma de grandes comícios. Em Sergipe, o evento se realizou num domingo, 26 de fevereiro de 1984. Segundo o Jornal da Cidade, a Fausto Cardoso acolheu cerca de trinta (30) mil pessoas. Dentre as autoridades presentes, estavam o então presidente nacional do PT, Luiz Inácio Lula da Silva (atual presidente do Brasil); e também o então presidente do DCE/UFS, Edvaldo Nogueira (atual prefeito de Aracaju), em cujo mandato se realizou a última reforma de nossa praça.

No âmbito das artes, a Fausto Cardoso foi musa de vários poetas. Mas destaco o poema de Jacintho de Figueiredo, escrito à época das comemorações do centenário de Aracaju, em que ele chama a praça de "coração da cidade". Eis os versos: "Na praça principal, - coração da cidade -/ (Como é bom recordar o que de bom havia!)/ Um viçoso jardim, e ornando-lhe a vaidade,/ Esplêndida calçada em torno se estendia./ Nas noites de domingo a invariabilidade/ Da Banda no coreto em estos de harmonia;/ Ao longo da calçada, a vida, a mocidade,/ Distraidamente, em grupos, conversava e ria". O poeta cantava um tempo liricamente idealizado que, para ele, já se finava: das retretas nos coretos; do jardim viçoso; da esplêndida calçada; das alegrias da mocidade. Era como se a velha praça estivesse se extinguindo; como se as mudanças não perpassassem por seus jardins.

Mas a praça vem se revitalizando, a exemplo da última reforma sofrida este ano. Remoçada, o "coração da cidade" voltou a pulsar, recebendo prostitutas; convidando turistas; acolhendo mendigos; esperando estudantes; suspirando com os namorados; bocejando com os comerciários; legislando com os parlamentares e acompanhando as passeatas. Enfim, voltando a ter vida e a ser, como dizia o poeta, a "praça principal".

*Professor do Instituto Federal de Sergipe (IF-SE) e sócio do IHGS. E-mail: acneto@infonet.com.br

Referência bibliográfica

1- BULCÃO. Antônio de Araújo d'Aragão. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa. Aracaju: Typographia do Jornal de Sergipe, 02 de março de 1868.

2 - SANTOS NETO, Amâncio Cardoso dos. Sob o signo da peste: Sergipe no tempo do cholera, 1855-1856. Campinas/SP: IFCH-Unicamp, 2001. (Dissertação de Mestrado em História).

3 - Diário do Imperador D. Pedro II na sua visita a Sergipe em Janeiro de 1860. Revista do IHGS. Aracaju,

4- Relatório da Viagem Imperial à Província de Sergipe em janeiro de 1860. Bahia, Typographia do Diário, 1860. p. 18 e passim.

5 - BARBOZA, Naide. Em busca de imagens perdidas: Centro histórico de Aracaju, 1900-1940. Aracaju: Funcaju, 1992. p. 43-54.

6 - AMADO, Genolino. Um menino sergipano. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 210.

7 - CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju. 3. ed. Aracaju: Banese, 2001.p 204. (1ª edição em 1948; e 2ª em 1955).

8 - PORTO, Fernando. Alguns nomes antigos do Aracaju. Aracaju: J. Andrade, 2003. p. 178.

9 - MELINS, Murilo. Aracaju romântica que vi e vivi. 3. ed. Aracaju: Unit, 2007. p. 85.

10 - MELINS, Murilo. Aracaju romântica que vi e vivi. 3. ed. Aracaju: Unit, 2007. p. 45.

11 - "Comício reúne mais de trinta mil pessoas". Jornal da Cidade. Aracaju, n. 3641, 28 de fev. de 1984. p. 02.

12 - FIGUEIREDO, Jacintho de. Retretas. In: Motivos de Aracaju. 3. ed. Aracaju: Funcaju, 2000. p. 69.

Texto e imagem reproduzidos do site: aracaju.se.gov.br

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