Publicado originalmente no site da PMA, em 24/03/2010.
Praça Fausto Cardoso: Patrimônio Histórico de Aracaju.
Por Amâncio Cardoso*
Se fosse eleito um núcleo urbano para Aracaju, ele deveria
estar inscrito na praça Fausto Cardoso. Ela é uma das primeiras áreas públicas
demarcadas pelo engenheiro Pirro em seu desenho fundador da capital, em 1855.
Desde os primórdios da cidade que a antiga praça participa da vida aracajuana
como um lugar de significativa importância e de diversas funções. Anotemos,
assim, algumas histórias que atestam tais qualificações.
Nos idos de 1868, o então presidente da província relatou
que aterrara a "Praça de Palácio" para diminuir os pântanos e charcos
que alagavam Aracaju. Neste período, onde hoje está a praça, havia um largo de
areia em que se situava o primeiro palácio do governo provincial. Daí a
expressão "Praça de Palácio" como primeiro topônimo do lugar.
Atualmente, onde funcionava o antigo palácio está a Delegacia Fiscal, do
Ministério da Fazenda, na esquina da face norte da praça com a rua da Frente.
Quanto ao serviço de aterro, informado no documento, era de extrema importância
à época, pois se acreditava que as águas estagnadas no areal sofriam evaporação
e infectavam o ar, produzindo gases miasmáticos, os quais provocariam doenças
epidêmicas.
Desse modo, Aracaju e, especificamente, a antiga praça eram
um quadrante encharcado que precisou de muito aterro. Prova disso é o registro
de um ilustre visitante de nossa capital, oito anos antes, em 1860, o Imperador
D. Pedro II (1825-1891). O monarca assim escreveu sobre os charcos da novel
cidade: "botaram terra sobre a areia das ruas: não contavam com a chuva de
hoje que formou muita lama." .
Por coincidência, foi na antiga "Praça de Palácio"
que se hospedaram o Imperador, a Imperatriz e suas comitivas. Além disso, o
desembarque imperial ocorreu "em frente à Praça de Palácio" num
atracadouro de madeira, hoje conhecido como Ponte do Imperador, outro marco
histórico-arquitetônico contíguo à praça. Sendo assim, enquanto a ponte serviu
de portão de entrada para Suas Majestades, o velho largo se prestou como
ante-sala. Pois, de seus aposentos, no antigo palácio (hoje Delegacia Fiscal),
transformado em Paço Imperial durante a visita, o monarca vislumbrou a praça
apinhada de súditos em sua reverência. Até hoje, esta insigne visita marca a
memória dos sergipanos, materializada no largo da praça e monumentos contíguos:
"ponte" e "palácio" imperiais.
Ainda no século XIX, foram plantadas, no descampado da
praça, palmeiras imperiais importadas; talvez para lembrar a visita de D. Pedro
II. Este foi o primeiro esforço de arborização em Aracaju, depois complementado
com o plantio de oitizeiros e figos-benjamin; trazidos do Horto Florestal do
Rio de Janeiro. A importação de árvores exóticas obedecia a um movimento
estético das cidades européias, vistas como modelo civilizador.
Exemplo de embelezamento da Fausto Cardoso, com intenções
modernizadoras, ocorre no início do século XX, quando são construídos os
coretos que até hoje existem. Estes equipamentos arquitetônicos, além de
embelezar, intensificavam a sociabilidade, pois ali ocorriam as retretas -
apresentações de banda de música em praça pública -; os discursos políticos,
que os utilizavam como palanques; e as missas campais. A partir de 1920, ano do
centenário da emancipação política de Sergipe, foram construídos também os
passeios externos e internos; instalados os postes de iluminação; assentados
novos bancos vindos dos Estados Unidos. Por conta disso, o lazer, o civismo e o
bem-estar serão novos serviços oferecidos pelo velho largo com seus modernos
mobiliários.
Sobre seu nome, a vetusta praça experimentou vários topônimos,
além do "Praça de Palácio", já foi chamada "do Imperador";
"da República" e finalmente, em 1910, "Fausto Cardoso".
Aliado a este último topônimo, ela recebeu em 1912 outra inovação: a primeira
estátua pública de Aracaju. Pois o assassinato de Fausto Cardoso (1864-1906)
foi eternizado na memória popular no local em que o deputado e advogado
falecera. Assim, praça documenta, desde então, uma das tragédias mais lembradas
da história política de Sergipe.
Quanto ao episódio da instalação da estátua, o escritor
Genolino Amado (1902-1989), lembra que naquele dia a praça estava numa
"aglomeração como nunca se viu". Tanto para cultuar, segundo Amado, o
mito político; como para "ver e ouvir" o então afamado magistrado
Gumercindo Bessa (1859-1913) em sua última manifestação de eloqüência, pois o
orador estanciano raramente saía à rua, muito menos para discursar em praça
pública.
Outro memorialista da cidade, Mário Cabral (1914-2009),
lembra da praça em um de seus momentos mais significativos em termos estéticos.
Admira-se Cabral, em 1948: os "jardins [da Fausto Cardoso] são magníficos.
Possui dois coretos monumentais, uma fonte luminosa, além de outras obras de
arte". Nesse ambiente agradável, continua o memorialista, "aos
domingos e feriados, à tarde e à noite, ao som da música, ora da polícia, ora
do exército, as moças e os rapazes fazem o seu desfile de elegância e
futilidade". Pelo que indica Cabral, o espaço da praça nestes eventos era
dominado pela juventude classe média e/ou abastada que desfrutava de um lugar
central e privilegiado para ostentar seus símbolos exteriores de poder social e
econômico, tais como carros novos e roupas elegantes durante o
"footing" pela bela praça.
Neste período, além dos poucos carros particulares, a Fausto
Cardoso era ponto dos "carros de praça" (atuais táxis). Aliás, para o
memorialista Fernando Porto (1911-2005), as expressões dicionarizadas no
Aurélio "carros de praça" (táxi) e "chofer de praça"
(motorista de táxi) teriam sido originadas em alusão aos carros e motoristas estacionados
na praça Fausto Cardoso. Segundo outro memorialista de Aracaju, Murilo Melins,
em agosto de 1933, "o ponto dos carros de praça foi transferido [da rua de
Laranjeiras] para a Praça Fausto Cardoso", que recebeu o nome de
"Praça de Carros 131", número de telefone que servia aquele local.
Fica patente que os modernos serviços públicos tinham na velha praça seu lugar
assegurado. Era e ainda é ponto de referência para todos.
Mas as memórias de Melins registram também outras tragédias
de que a praça foi testemunha. A primeira delas diz respeito ao torpedeamento
dos navios mercantes na costa sergipana em 1942, durante a 2ª. Guerra Mundial.
Da sacada do palácio para o povo assustado na praça, o interventor Augusto
Maynard (1886-1957) discursara pedindo "calma, e muita calma" aos
sergipanos atônitos. O segundo episódio trágico foi o linchamento do líder
trabalhista Lídio Paixão, "próximo à estátua de Fausto Cardoso",
durante um ato público no dia do suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 24
de agosto de 1954. Como se vê, entre momentos de lazer, festas e romances, a
praça parece ter a sina de testemunhar tragédias emblemáticas, como a do
personagem que lhe empresta o nome.
No aspecto cultural, uma das manifestações mais tradicionais
da religiosidade aracajuana, e que possui íntima relação com a praça Fausto
Cardoso, é a procissão de Bom Jesus dos Navegantes, no dia 1º de janeiro.
Durante o préstito católico, a praça se torna uma passarela para o embarque e
desembarque da charola do Bom Jesus na Ponte do Imperador. Muitas fotografias,
tiradas ao longo do século XX, documentam o uso da praça pelos devotos durante
a centenária procissão.
No campo político, no entanto, o evento mais marcante, e que
teve a praça Fausto Cardoso como palanque, foi o da campanha das "Diretas
Já". Este movimento selou o início da derrocada do Regime Militar após
vinte anos de ditadura; sem eleições diretas, inclusive para presidente da
República. A campanha se espraiou por todo o Brasil na forma de grandes
comícios. Em Sergipe, o evento se realizou num domingo, 26 de fevereiro de
1984. Segundo o Jornal da Cidade, a Fausto Cardoso acolheu cerca de trinta (30)
mil pessoas. Dentre as autoridades presentes, estavam o então presidente
nacional do PT, Luiz Inácio Lula da Silva (atual presidente do Brasil); e
também o então presidente do DCE/UFS, Edvaldo Nogueira (atual prefeito de
Aracaju), em cujo mandato se realizou a última reforma de nossa praça.
No âmbito das artes, a Fausto Cardoso foi musa de vários
poetas. Mas destaco o poema de Jacintho de Figueiredo, escrito à época das
comemorações do centenário de Aracaju, em que ele chama a praça de
"coração da cidade". Eis os versos: "Na praça principal, -
coração da cidade -/ (Como é bom recordar o que de bom havia!)/ Um viçoso
jardim, e ornando-lhe a vaidade,/ Esplêndida calçada em torno se estendia./ Nas
noites de domingo a invariabilidade/ Da Banda no coreto em estos de harmonia;/
Ao longo da calçada, a vida, a mocidade,/ Distraidamente, em grupos, conversava
e ria". O poeta cantava um tempo liricamente idealizado que, para ele, já
se finava: das retretas nos coretos; do jardim viçoso; da esplêndida calçada;
das alegrias da mocidade. Era como se a velha praça estivesse se extinguindo;
como se as mudanças não perpassassem por seus jardins.
Mas a praça vem se revitalizando, a exemplo da última
reforma sofrida este ano. Remoçada, o "coração da cidade" voltou a
pulsar, recebendo prostitutas; convidando turistas; acolhendo mendigos;
esperando estudantes; suspirando com os namorados; bocejando com os
comerciários; legislando com os parlamentares e acompanhando as passeatas.
Enfim, voltando a ter vida e a ser, como dizia o poeta, a "praça
principal".
*Professor do Instituto Federal de Sergipe (IF-SE) e sócio
do IHGS. E-mail: acneto@infonet.com.br
Referência bibliográfica
1- BULCÃO. Antônio de Araújo d'Aragão. Relatório apresentado
à Assembléia Legislativa. Aracaju: Typographia do Jornal de Sergipe, 02 de
março de 1868.
2 - SANTOS NETO, Amâncio Cardoso dos. Sob o signo da peste:
Sergipe no tempo do cholera, 1855-1856. Campinas/SP: IFCH-Unicamp, 2001.
(Dissertação de Mestrado em História).
3 - Diário do Imperador D. Pedro II na sua visita a Sergipe
em Janeiro de 1860. Revista do IHGS. Aracaju,
4- Relatório da Viagem Imperial à Província de Sergipe em
janeiro de 1860. Bahia, Typographia do Diário, 1860. p. 18 e passim.
5 - BARBOZA, Naide. Em busca de imagens perdidas: Centro
histórico de Aracaju, 1900-1940. Aracaju: Funcaju, 1992. p. 43-54.
6 - AMADO, Genolino. Um menino sergipano. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 210.
7 - CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju. 3. ed. Aracaju:
Banese, 2001.p 204. (1ª edição em 1948; e 2ª em 1955).
8 - PORTO, Fernando. Alguns nomes antigos do Aracaju.
Aracaju: J. Andrade, 2003. p. 178.
9 - MELINS, Murilo. Aracaju romântica que vi e vivi. 3. ed.
Aracaju: Unit, 2007. p. 85.
10 - MELINS, Murilo. Aracaju romântica que vi e vivi. 3. ed.
Aracaju: Unit, 2007. p. 45.
11 - "Comício reúne mais de trinta mil pessoas".
Jornal da Cidade. Aracaju, n. 3641, 28 de fev. de 1984. p. 02.
12 - FIGUEIREDO, Jacintho de. Retretas. In: Motivos de
Aracaju. 3. ed. Aracaju: Funcaju, 2000. p. 69.
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