Publicado originalmente no site da Revista Mais Glória, em 4
de junho de 2014.
Arthur Bispo do Rosário, arte e insanidade.
Por Pedro Ivo Ambrosoli*
Muito antes dos surrealistas, a linha tênue entre o insano
e o consciente vem sendo abordada na arte. No Brasil, uma figura expoente na
arte popular vivia nesse meio. Seu nome era Arthur Bispo do Rosário (1911-
1989) cujas obras produzidas no hospital psiquiátrico onde ficou internado
grande parte da vida ganharam tanto reconhecimento do circuito artístico que
parte delas representou o Brasil na Bienal de Veneza em 1995. Na véspera do
natal de 1938, o ex-pugilista e lavador de ônibus apareceu num mosteiro no
Rio de Janeiro afirmando que tivera um delírio místico, dizendo ser um enviado
de Deus, encarregado de julgar os vivos e os mortos. Diagnosticado como
esquizofrênico-paranóico foi internado primeiramente no Hospício Pedro II e
depois na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, onde viveu por 50 anos
não-consecutivos.
Ele agrupava canecas, chapéus botões, garrafas, miniaturas
de navios de guerra e caminhões, entre outros objetos, com a intenção de criar
um inventário do mundo para ser entregue a Deus num trabalho que questiona o
limite entre arte e insanidade. Foi comparado, pelos críticos, ao fundador do
dadaísmo, Marcel Duchamp. A sua obra mais conhecida é o “Manto da
Apresentação”, que Bispo deveria vestir no dia do Juízo Final, com ele,
pretendia marcar a passagem de Deus na Terra. Os objetos recolhidos dos
restos da sociedade de consumo foram reutilizados como forma de registrar o
cotidiano dos indivíduos, preparados com preocupações estéticas, onde se
percebem características dos conceitos das vanguardas artísticas e das
produções elaboradas a partir de 1960. Esses objetos na obra de Bispo eram
dados por funcionários e outros pacientes do manicômio que o faziam por
escambo ou compaixão.
Utilizava a palavra como elemento pulsante. Ao recorrer a
essa linguagem, manipula signos e brinca com a construção de discursos,
fragmenta a comunicação em códigos privados de sua vida. Inserido em um
contexto excludente, Bispo driblava as instituições a todo momento: a
instituição psiquiátrica na recusa ao receber tratamentos médicos, retirando
dela subsídios para elaborar sua obra, além dos museus, quando foi
marginalizado e excluído, sendo consagrado como referência da arte
contemporânea brasileira.
Bispo tinha o costume de apagar o seu passado, dizendo
apenas: “Um dia eu simplesmente apareci”. Mantinha o mistério sobre sua cidade
natal, apesar de os dados biográficos revelarem a verdade: nasceu em
Japaratuba, Sergipe. Para escapar da realidade do centro psiquiátrico, ele
criou um mundo só seu, passava horas em sua cela, imerso em pensamentos. Sobre
a sua própria situação e a de seus colegas, tinha opiniões muito particulares:
“O louco é um homem vivo guiado por um morto”, dizia. Ou: “Os doentes mentais
são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do chão”.
Em 1982 o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro expôs
alguns exemplares do universo de Bispo numa exposição coletiva intitulada “À
margem da vida”, reunindo presidiários, menores infratores e idosos. A
princípio ele não quis participar, mas depois cedeu algumas obras. Na época, o
crítico de arte Frederico Morais ofereceu-lhe uma sala inteira para exposição
no MAM, onde Bispo poderia se alocar por um tempo, ele nem pensou no assunto.
Morreu na solidão de sua cela, em 1989, sem ver seu império, seu mundo,
classificado como obra de arte, percorrendo o mundo. Mas, aos olhos da crítica
e do público, ele já era um artista em vida.
* Pedro Ivo Ambrosoli - Artista desde 2001, estudava
Arquitetura e Urbanismo na UFRJ até 2012 quando mudou o seu curso para História
da Arte na mesma universidade.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistamaisgloria.com
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