Postada por Isto é SERGIPE, para ilustrar artigo.
Publicado no blog Primeira Mão, em 9 de julho de 2012.
Emancipação Cultural de Sergipe
Por Samuel Albuquerque*
Paço Real, Rio de Janeiro, 8 de julho de 1820. D. João VI,
rei de Portugal, Brasil e Algarves, assinava o decreto que emancipava,
politicamente, a Capitania de Sergipe d’El-Rey. Sob a lupa de renomados
historiadores, esse é o fato que melhor representa o processo de emancipação
política de Sergipe.
Tribunal da Relação, Aracaju, 6 de agosto de 1912. Um grupo
de pouco mais de vinte intelectuais fundava o “Instituto Historico e
Geographico de Sergipe”. Sob a minha lupa, esse é o fato que melhor representa
o processo de emancipação cultural de Sergipe, pois o IHGSE foi o locus
original dos debates sobre a Sergipanidade.
Desde a sua criação, o Instituto passou a reunir a fina-flor
da nossa intelectualidade e capitanear ações que visavam preservar a memória,
estudar a história e a geografia e construir uma identidade sergipana. Segundo
Itamar Freitas, a entidade “transformou-se no mais importante centro de debates
científicos que se tem notícia durante a primeira República” (Freitas, 2007. p.
180).
Entretanto, não tenho dúvida que, até fins da década de 1960
(com a instalação da Universidade Federal de Sergipe), o IHGSE conduziu o
processo de desenvolvimento das Ciências Humanas, dando as diretrizes nos
fazeres historiográficos, geográficos, sociológicos, antropológicos,
arqueológicos e museológicos em nosso estado. Além disso, a “Revista do
Instituto Historico e Geographico de Sergipe”, que circula desde 1913, é
reveladora do pioneirismo da instituição nos debates sobre a identidade local.
Uma análise atenta do conteúdo veiculado no referido periódico também revela
que os intelectuais do Instituto, mais que estudiosos e intérpretes, foram
inventores da Sergipanidade.
Debrucei-me sobre os números da revista que circularam nos
dez primeiros anos de existência do IHGSE. Deparei-me, então, com trabalhos dos
seguintes “inventores”: Manoel Armindo Cordeiro Guaraná (1848-1924), juiz
aposentado e autor do monumental “Dicionário bio-bibliográphico sergipano”
(1925); Francisco Antonio de Carvalho Lima Junior (1859-1929), advogado
provisionado, político e autor da “História dos limites entre Sergipe e Bahia”
(1918); Manuel dos Passos de Oliveira Telles (1859-1935), juiz e autor de
“Sergipenses” (1903); Joaquim do Prado Sampaio Leite (1865-1932), bacharel em
Direito, professor e autor de “Sergipe artistico, litterario e scientifico”
(1928); Elias do Rosario Montalvão (1873-1935), cirurgião dentista, funcionário
público e autor do livro didático “Meu Sergipe” (1916); Adolpho Ávila Lima
(1882-?), bacharel em Direito e professor; e Luiz José da Costa Filho
(1886-1948), bacharel em Direito, professor e político. Embora praticamente
ausentes no grupo de colaboradores da Revista, também estiveram vinculados ao
Instituto: Ivo do Prado Montes Pires da França (1860-1924), oficial do Exército
e autor de “A Capitania de Sergipe e suas Ouvidorias” (1919); e Clodomir de
Souza e Silva (1892-1932), bacharel em Direito, professor, político e autor do
“Album de Sergipe” (1920) e de “Minha gente” (1926). Grosso modo, tratam-se dos
“doutores que ficaram”, designação que os diferencia dos nossos célebres
“intelectuais emigrados”. Eles compõem a primeira geração de intelectuais do
Instituto, homens que consagraram seu talento aos estudos sobre Sergipe e que,
em maior ou menor escala, contribuíram para inventar a Sergipanidade.
Entre os textos veiculados na Revista, chama atenção (logo
de início) o pronunciamento de Florentino Telles de Menezes (1886-1959) na
sessão solene de fundação do Instituto. O sociólogo apropriou-se de um discurso
cultivado entre os seus pares e afirmou: “Sergipe é pobre e pequeno em
território, mas grande pelo trabalho, pela energia e pelo talento de seus
filhos, pelo talento que eleva... eleva e nobilita” (Menezes, 1913. p. 10). Daí
por diante, a tradição de identificar o sergipano por seus dotes intelectuais,
em contraposição à pequenez e à pobreza do nosso território, ganharia tons de
tese científica, defendida a ferro e fogo pelos homens letrados da Casa de
Sergipe.
Referindo-se ao IHGSE em sua “Historiografia Sergipana”, Itamar
Freitas já havia assinalado que “as práticas da instituição, configuradas em
suas reuniões semanais e nas páginas da Revista, forjaram uma ‘sergipanidade’
sintetizada na bravura dos soldados e políticos, na visão progressista de
alguns governantes do estado e, sobretudo, na inteligência dos seus laureados
poetas e pensadores” (Freitas, 2007. p. 180-181).
Bebendo na própria fonte, segui na leitura dos textos
veiculados no periódico e, nesse sentido, as colaborações de Prado Sampaio
foram as que mais chamaram a minha atenção. Fazendo uso de lentes
interpretativas próprias de sua época, notadamente as ideias cientificistas de
Ernest Haeckel e Friedrich Ratzel, esse “inventor” acredita que as
manifestações culturais devem ser analisadas a partir dos conceitos de raça
(elemento estático) e meio (elemento dinâmico). Para ele, tanto do ponto de
vista etnológico quanto mesológico, Sergipe é um berço de talentos. E esses
talentos teriam contribuído decisivamente para dar os contornos da literatura e
da ciência no Brasil. Os exemplos de Tobias Barreto, Sílvio Romero, João
Ribeiro, Gumercindo Bessa, Fausto Cardoso, Felisbelo e Laudelino Freire são
emblemáticos.
Segundo Jackson da Silva Lima, “a característica literária
essencial dos discípulos sergipanos de Tobias Barreto, a notável plêiade dos
‘Bacharéis do Recife’, pode ser rotulada com uma única palavra: sergipanidade,
que se consubstancia no interesse cultural superior pelas coisas da
terra-berço, sem os ranços execráveis do bairrismo comum. Não se trata, portanto,
de uma exaltação pueril e cega da pequena pátria, simplesmente por ser o lugar
do nascimento desse ou daquele escritor conterrâneo, mas, sim, a redução
sociológica e cultural dos conhecimentos literários e científicos universais,
tendo como ponto de partida a realidade terrantês, em seus múltiplos aspectos.
É o que fizeram todos os seguidores de Tobias Barreto (1839-1889), merecendo
menção destacada, em termos regionais: Gumercindo Bessa (1859-1913), Prado
Sampaio (1865-1932) e Oliveira Teles (1859-1939), seu último discípulo entre
nós” (Lima, 2012).
Para além dos estudos de José Calasans e Itamar Freitas
sobre a nossa Historiografia, o legado intelectual dos inventores da
Sergipanidade merece a nossa atenção. Tenho notícias (colhidas, sobretudo, na
Plataforma Lattes do site do CNPq) de trabalhos de conclusão de curso,
produzidos no Departamento de História da UFS (sob a orientação dos professores
Francisco José Alves, Itamar Freitas de Oliveira, Terezinha Alves de Oliva e
Antônio Lindvaldo Sousa) e no curso de História da Universidade Tiradentes (sob
a orientação dos professores Maria Nele dos Santos e José Vieira da Cruz), que
seguiram esse caminho. Contudo, o difícil acesso a essas monografias,
esquecidas nas prateleiras das bibliotecas universitárias (sucumbindo ao “pó
dos arquivos”, como diria Carvalho Lima Junior), acaba por dificultar a
circulação do conhecimento acadêmico. Devo assinalar que a Revista do IHGSE
está aberta à publicação de resumos ou partes essenciais desses trabalhos!
Enquanto reflexão final, registro que, mesmo percebendo a
necessidade de se estudar o legado dos pioneiros, não devemos nos descuidar com
as novas faces da Sergipanidade. Mais que nunca, novas memórias emergem e novas
identidades são forjadas. Mas ainda assim, estou certo de que a data da
fundação do IHGSE pode e deve ser tomada como referência no processo de
emancipação cultural de Sergipe. O dia 6 de agosto de 1912 está para o campo
cultural assim como o 8 de julho de 1820 está para o campo político. O nosso
Instituto representa uma espécie de “marco zero”, um centro irradiador das
reflexões sobre a nossa identidade. As instituições literárias e científicas
surgidas posteriormente acabaram por asfaltar e ampliar a estrada que foi
aberta pelos intelectuais da centenária “Casa de Sergipe”.
* Adaptação do discurso preferido na sessão solene
comemorativa da Emancipação Política de Sergipe, realizada pelo IHGSE em 06 de
julho de 2012, e publicado no Jornal da Cidade de 08 de julho de 2012 (Caderno
B, página 7, coluna Opinião).
* Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe
Fontes e Bibliografia utilizadas:
O Decreto de 8 de Julho de 1820. Revista do Instituto
Historico e Geographico de Sergipe, Aracaju, v. 5, n. 9, p. 9, 1920.
Acta da fundação do Instituto Historico e Geographico de
Sergipe, disponível em <http://www.ihgse.org.br/atas/img/1912/ago.PDF>
Acesso em 18 de junho de 2012.
FREITAS, Itamar. A escrita da História na “Casa de Sergipe”
– 1913/1999. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira,
2002 (Coleção Nordestina).
SOUZA, Cristiane Vitório de. A “república das letras” em
Sergipe (1889-1930). Revista de Aracaju, n. 09, p. 189-208, 2002.
FREITAS, Itamar. Historiografia sergipana. São Cristóvão:
EdUFS, 2007.
Revista do Instituto Historico e Geographico de Sergipe,
números 1 a 12, disponíveis
<http://www.ihgse.org.br/revista_edicoes_anteriores.asp> Acesso em 18 de
junho de 2012.
GUARANÁ, Manoel Armindo Cordeiro. Dicionário
bio-bibliográphico sergipano. Rio de Janeiro: Pongetti & C, 1925;
MENEZES, Florentino Telles. Instituto Historico e
Geographico de Sergipe. Revista do Instituto Historico e Geographico de
Sergipe, Aracaju, v. 1, n. 1, p. 9-12, 1913.
LIMA, Jackson da Silva. Uma lição de sergipanidade. In: TELLES,
M. P. Oliveira. Sergipenses (Escriptos Diversos). 2 ed. São Cristóvão: EdUFS;
Aracaju: IHGSE, 2012 (Coleção Biblioteca Casa de Sergipe, 3) [no prelo].
Texto reproduzidos do blog: primeiramao.blog.br
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